Texto - "Memoria dos feitos macaenses contra os piratas da China [...]" José Ignacio de Andrade

feche e comece a digitar
Com a sua morte ganharam os piratas tal audácia, que tiveram a ousadia de passar com o
navio prisioneiro, e com a bandeira de rasto, à vista de Macau. A
sensação que fez esse triste espetáculo dos moradores daquela cidade é
inexplicável. Juraram não só retomar a sua embarcação, mas também dar
aos piratas o castigo merecido. Os navios que então se achavam no porto
capazes de tal empresa, eram o brigue do Senado, e o navio Belizário.
O brigue achava-se desarmado, e desaparelhado, assim como o Belizário.

Seriam nove horas da manhã, quando se avistou o navio apressado; e antes
de anoitecer já os nossos iam no alcance da esquadra inimiga! como foi
possível cobrar tanto em tão pouco tempo? Tudo se deveu à generosidade
dos macaenses, e ao estímulo dado pelo incansável Arriaga. Este digno
ministro, honra dos togados, e coluna forte da glória nacional, não se
limitou a ser o primeiro em votar, e concorrer com meios para o
desempenho desta empresa. Pesando a importância da cidade, e o perigo em
que ela se achava, resolveu sobre sua defesa penhorar todas as forças
sem perdoar as despesas, diligências ou perigos. Foi com seus braços dar
exemplo aos macaenses mais distintos, que todos trabalharam na
prontificação dos navios.

Era este varão entre os macaenses bem semelhante à alma dos estoicos,
espalhada pelo universo. Estava em toda a parte. Seria preciso
eloquência extremada e presenciar todos os seus ilustres feitos, para
elogiar as altas qualidades deste preclaro varão: sem isso não é
possível aparecerem tão brilhantes como foram praticados.

Por não haver então em Maceió oficial de mar, que se julgasse destro na
política, ainda que todos sobrepujaram, no valor, deu-se o comando em
chefe ao capitão de artilharia José Pinto Alcoforado de Azevedo e Sousa.
Sustentou este invicto herói, em toda a luta contra os piratas, a
dignidade português de modo, que bem se parecia com o primeiro Capitão
Lusitano, que aportou naquele império.

Ao amanhecer subirão os montes, sobranceiros à cidade, ansiosos por ver
seus campeões; avistaram o brigue do botelho, que tendo surgido em
plantão prisioneiro, e ficando-lhe abordo os portugueses restantes do
combate, assim que o tufão soprou do oriente, cortaram as amarras e
vieram encalhar na Taipa. Os macaenses exultaram com este sucesso, e
muito mais por avistarem o brigue, e o Belisário, que pela grande
perícia de seus oficiais tinha escapado à fúria do tufão.

Havia também uma lancha armada em guerra comandada por Antônio José
Gonçalves Caroxa: mancebo ativo e destemido. Era comando de difícil
desempenho; por ser a embarcação condutora dos víveres para os nossos,
levados por entre os inimigos em frequentes combates. A força da lorcha
constava de quatro pedreiros, um obus de doze, e trinta homens de
tripulação. Algumas vezes aconteceu estar incorporada aos nossos navios,
quando batiam os piratas. Se o acaso permitiu acalmar o vento, nessas
ocasiões fazia o nosso Caroxa maravilhas extremadas.

Desejava Cam-pau-sai encontra-lo, onde não pudessem defende-lo os nossos,
para mais a salvo descarregar sobre ele seu poder, e seu ódio. Teve
quem lhe desse dia certo em que a lorcha havia passar por lugar, onde
Cam-pau-sai podia satisfazer seus desejos. Amanheceu o dia aprazado, e o
novo Aquiles Lusitano chegou ao passo, que bem pode nomear-se
Cabalão. Achou-o coberto de inimigos: mas julgando urgente o
desempenho da sua comissão, tentou abrir caminho. Ainda que a sua
tripulação era toda de Chineses, tinha a sua disciplina: julgou que isso
bastava.

Os inimigos tentaram rodeá-lo; mas o intrépido Caroxa lançou mãos ao
obus, e como o reparo era de pião, jogava para todos os lados. Aos que
se lhe aproximavam cortava-os com metralha; e aos que estavam mais longe
passava-os com balas. Mas os navios inimigos eram tantos, que mal podia
desbaratar a todos os que lhe vinham ao alcance. Com tudo apesar de ver
a maior parte da tripulação morta, não esfriava no empenho de vencer.
Não usava render-se, nem fugir; cada vez mais afouto pretendia
desembaraçar o passo. Mas os restantes da tripulação vendo passar-lhe as
balas pelo vestido, sem lhe ofender o corpo, e irem matar os seus
companheiros; por que não lhes sucedesse o mesmo, ousaram lançar-se a
ele, e amarrá-lo de pés e mãos. Segurando assim o homem, que lhes
parecia invulnerável, fugiram para a cidade, onde o entregaram cheios de
espanto e de temor, dando por desculpa do seu arrojo, o muito que
apreciavam a existência do seu comandante.

Os macaenses receberam o destemido Caroxa com estimação digna dos
importantes serviços, que lhes fazia, e do valor com que se
imortalizava. Mas o conselheiro Arriaga sobressaia a todos. Tinha
maneiras singulares para introduzir heroísmo nos homens, que destinava a
empresas arriscadas. O sentimento lúgubre, que mostrava pela morte de um
marinheiro hábil, ou o elogio feito a outro que se distinguia, dava a
todos cobiça de se verem acatados e elogiados por ele. Nesta ocasião
um abraço dado no Caroxa, em nome da pátria fortaleceu a alma deste
Lusitano de modo, que só ele em sua lorcha, com outra equipagem, se
julgava suficiente para arrostar com todos os piratas.

Em verdade, onde as leis são respeitadas, a sociedade é livre: e os
homens serão livres em toda a parte, que houver governo justo como era
então o de Macaco. Longe de invejar a seus concidadãos as vantagens,
granadas por sua indústria, cuidava com muito desvelo em aumentá-las.
Não só deixava de oprimidos; mas assegurava a sua liberdade; bem
precioso ao homem, e necessário à sua ventura; tão distante da licença
perigosa, como da humilhação servil. O governo providente apenas liga as
mãos aos homens para não se ofenderem; mas deixa-os trabalhar sem
obstáculo para a sua felicidade; sabe que a ignorância não só deslumbra
os homens mas também os faz pusilânimes e desgraçados: a razão e a
liberdade melhoram o coração e os faz virtuosos e resolutos.

Arriaga sabia que a justa distribuição dos prémios e das penas é a
melhor ação do governo sobre o povo: serviu-se destas principais molas
do coração humano, para animar a virtude e o mérito; e obrigar o
interesse particular a promover o interesse público. O certo é que a
virtude desaparece, quando o vício é honrado. Algumas vezes lhe ouvi eu
que os favores dados à incapacidade, são roubos feitos ao merecimento; e
as recompensas dadas a quem bem serve a pátria são dívidas, que o
governo paga por ela. Fui testemunha das bênçãos, que lhe lançavam os
macaenses pelo muito que se ocupava da sua ventura. - Fazia do
merecimento dos homens estimação tão justa, que nem a conveniência, nem
ao estado ficava devedor: virtude dos príncipes dificultosa, e nos
ministros rara.

Os temerários, que tinham amarrado o invicto Caroxa, foram excluídos do
serviço português. Tomou nova tripulação e continuou a destruir os
piratas. Cam-pau-sai vivo constantemente frustradas, quantas diligências
fez para o tomar.

Logo que amainou o tufão, partiram os nossos em procura do inimigo.
Acharam reunidas as esquadras de Cam-pau-sai, e Apau-tai, nos canais de
Wam-poo, em 15 de Setembro de 1809. Assim que avistaram os navios
Macaenses, suspenderam, mas os nossos carregaram sobre eles.
Cam-pau-sai empenhou-se no combate; fez entrar nele os seus melhores
navios: mas o fogo violento das nossas embarcações fazia-lhe tal
estrago, que saindo eles do alcance da nossa artilharia, poucas ficavam
em estado de entrar segunda vez no fogo. Com tudo cevados de raiva, e
ávidos de glória, a fim de iludir os povos do seu partido, ainda bem
uns não se tinham retirado, já outros tomavam o lugar vago. Não sendo o
Belisario construído para guerra tão violenta, abriu com o impulso da
artilharia; tornou-se incapaz de combater: retirou-se. O invito
Alcoforado não podendo vencer força tão superior também se retirou, mas
deixou em cinzas muitas embarcações inimigas.