Dez vezes Dez vezes alcançou a cega deusa e a deixou fugir: chegou a possuir cem mil escudos, que um desastre reduziu a quinhentos francos, os quais depois se tornaram em duzentas mil libras, para mais tarde recaíram em zero... É sempre assim, durante meio século!
O acaso, que tomara por bússola, brincava com este homem, como um colegial com uma pela, lançando-a a grande altura, ou mergulhando-a no fundo de um poço. Porém ele comprazia-se no meio destas alternativas, que lhe proporcionaram uma febre perpétua de inteligência. Tão ardente no prazer, como tenaz no lucro, levava uma existência faustosa nos seus dias felizes; dava festas gigantescas, semeava oiro às mãos cheias, e saciava-se de todas as sensualidades. Mudava a sorte, vivia de uma côdea de pão e de um cachimbo de tabaco, não se importando de servir de criado àqueles mesmos que recebera à sua mesa.
Desconhecia preconceitos e falsas vergonhas: respirava só pelas comoções corrosivas da perda e do ganho.
Entretanto fixará um limite à sua futura riqueza, e dissera consigo: "Não irás além!" Queria dois milhões. Por várias vezes conseguiu o seu fim; mas... vinha um incêndio, uma falência, uma revolução, um cataclismo qualquer, que tudo absorvia. Acontecera-lhe um dia seguir uma caravana, carregada por ele de perfumes, marfim, ébano e pedras preciosas. Pelo caminho calculou os lucros prováveis dessas mercadorias, e como achasse o seu ideal muito excedido, jurou que seria aquela a sua última tentativa. Eis senão quando, uma nuvem de salteadores árabes ataca a caravana e rouba-a, deixando Pedro quase morto no meio dos seus servos estrangulados. E Pedro, sempre filósofo, recomeçar pacientemente a sua teia despedaçada.
Assim rolando, de quedas em triunfos, e de vitórias em derrotas, sentiu chegar os sessenta anos; e, como aventureiro já saciado de fadigas, opulento à medida dos seus desejos, singrava enfim para as terras da pátria. Porém a tempestade arrojada o navio sobre a costa; dispersara os seus marinheiros e aniquilará a carregação, arruinando Pedro pela décima ou duodécima vez.
Um brigue estrangeiro recolheu-o das ondas, meio-morto, atado a uma tábua, louco de sede e de dor, fantasiando ainda no seu delírio uma sociedade colossal de comércio, que imaginava ter fundado. Apenas pôde sair do hospital, para onde o tinham transportado, a braços com um tétano, dirigiu-se para Paris. Foi lá que André Sauvain o encontrou andrajoso e faminto.
- E, desde esse dia, que mais empreendeu? perguntou o pintor, que escutara esta narrativa com crescente interesse.
- Um pouco de tudo, respondeu Pedro Toucard. Com o que me restava do seu dinheiro, comprei fósforos e revendi-os, apanhei pontas de charutos, serrei madeira, abri as portinholas das carruagens, fui moço de recados, escritor público, contratador de bilhetes de teatro, professor de esgrima, dei serventia a pedreiros, etc. ; enfim, tal como me vê, possuo já alguns centos de francos, que me produzirão avultados lucros. Vou alugar uma tenda; venderei seja o que for... seja a quem for: e, quando tiver mil francos de meu, visto-me de novo e vou jogar na Bolsa.
- Com que fundos?
- Com os da minha inteligência, respondeu Pedro Toucard, batendo na testa com gesto inspirado. Que grande habilidade jogar com capitais!... Com a breca!... se me emprestassem agora cinquenta mil francos, num mês teria ganho o quádruplo!
- Ou ficaria sem nada...
- Qual história! só os tolos é que se enterram, e eu tenho olho vivo... Aposto que ainda me verá milionário!
- Irra! disse Sauvain maravilhado daquela rara audácia, já é ter confiança em si!
- Porque tenho sorte... e ideias, replicou Pedro Toucard. Sou o amante preferido da fortuna: abandona-me às vezes, mas volta sempre para junto de mim... As ideias vêm-me, como aos outros o ar que respiram; uma palavra proferida pelo primeiro transeunte, o latido de um cão, uma tabuleta, a forma de uma nuvem, a musica de um realejo, tudo me gera uma ideia... Eis porque eu tenho confiança!...
Assim falando, o provençal enchera o cachimbo; e como o seu cartucho de tabaco ficara vazio, desenrolou-o maquinalmente, e alisou-o sobre o joelho.
- Olhe! acrescentou ele, mostrando o papel; quando me acho em embaraços, leio um anuncio, abro um jornal, ou o primeiro impresso que se me depara... este, por exemplo, e zás! uma ideia me.. .
Interrompeu-se de súbito, e o seu olhar ficou fixo no pedaço de papel, que lhe estava servindo para demonstração...
- Com mil amarras! exclamou ele, com voz tonante e erguendo-se de chofre.
- Que foi?... interrogou o pintor, erguendo-se também. O velho fez-se amarelo, logo carmesim, depois branco como um sudário, e por fim agarrou no pulso de Sauvain, e apertando-lho com força, balbuciou:
- Que numero é o desta casa?
- Oitenta e sete.
- Rua dos Mártires?
- Sem dúvida.
- Há cá alguém que se chame Germinal?
- Há, sem dúvida!... respondeu André estupefacto.
- Aonde mora?
- Aqui... ao lado... Era com ele que eu conversava há pouco!...
- Com mil raios! bradou Pedro.
E, num salto de jaguar, atravessou o atelier, abriu a porta, correu para o pátio, e chegou ao jardim, seguido do pintor, ofegante e desnorteado.
O acaso, que tomara por bússola, brincava com este homem, como um colegial com uma pela, lançando-a a grande altura, ou mergulhando-a no fundo de um poço. Porém ele comprazia-se no meio destas alternativas, que lhe proporcionaram uma febre perpétua de inteligência. Tão ardente no prazer, como tenaz no lucro, levava uma existência faustosa nos seus dias felizes; dava festas gigantescas, semeava oiro às mãos cheias, e saciava-se de todas as sensualidades. Mudava a sorte, vivia de uma côdea de pão e de um cachimbo de tabaco, não se importando de servir de criado àqueles mesmos que recebera à sua mesa.
Desconhecia preconceitos e falsas vergonhas: respirava só pelas comoções corrosivas da perda e do ganho.
Entretanto fixará um limite à sua futura riqueza, e dissera consigo: "Não irás além!" Queria dois milhões. Por várias vezes conseguiu o seu fim; mas... vinha um incêndio, uma falência, uma revolução, um cataclismo qualquer, que tudo absorvia. Acontecera-lhe um dia seguir uma caravana, carregada por ele de perfumes, marfim, ébano e pedras preciosas. Pelo caminho calculou os lucros prováveis dessas mercadorias, e como achasse o seu ideal muito excedido, jurou que seria aquela a sua última tentativa. Eis senão quando, uma nuvem de salteadores árabes ataca a caravana e rouba-a, deixando Pedro quase morto no meio dos seus servos estrangulados. E Pedro, sempre filósofo, recomeçar pacientemente a sua teia despedaçada.
Assim rolando, de quedas em triunfos, e de vitórias em derrotas, sentiu chegar os sessenta anos; e, como aventureiro já saciado de fadigas, opulento à medida dos seus desejos, singrava enfim para as terras da pátria. Porém a tempestade arrojada o navio sobre a costa; dispersara os seus marinheiros e aniquilará a carregação, arruinando Pedro pela décima ou duodécima vez.
Um brigue estrangeiro recolheu-o das ondas, meio-morto, atado a uma tábua, louco de sede e de dor, fantasiando ainda no seu delírio uma sociedade colossal de comércio, que imaginava ter fundado. Apenas pôde sair do hospital, para onde o tinham transportado, a braços com um tétano, dirigiu-se para Paris. Foi lá que André Sauvain o encontrou andrajoso e faminto.
- E, desde esse dia, que mais empreendeu? perguntou o pintor, que escutara esta narrativa com crescente interesse.
- Um pouco de tudo, respondeu Pedro Toucard. Com o que me restava do seu dinheiro, comprei fósforos e revendi-os, apanhei pontas de charutos, serrei madeira, abri as portinholas das carruagens, fui moço de recados, escritor público, contratador de bilhetes de teatro, professor de esgrima, dei serventia a pedreiros, etc. ; enfim, tal como me vê, possuo já alguns centos de francos, que me produzirão avultados lucros. Vou alugar uma tenda; venderei seja o que for... seja a quem for: e, quando tiver mil francos de meu, visto-me de novo e vou jogar na Bolsa.
- Com que fundos?
- Com os da minha inteligência, respondeu Pedro Toucard, batendo na testa com gesto inspirado. Que grande habilidade jogar com capitais!... Com a breca!... se me emprestassem agora cinquenta mil francos, num mês teria ganho o quádruplo!
- Ou ficaria sem nada...
- Qual história! só os tolos é que se enterram, e eu tenho olho vivo... Aposto que ainda me verá milionário!
- Irra! disse Sauvain maravilhado daquela rara audácia, já é ter confiança em si!
- Porque tenho sorte... e ideias, replicou Pedro Toucard. Sou o amante preferido da fortuna: abandona-me às vezes, mas volta sempre para junto de mim... As ideias vêm-me, como aos outros o ar que respiram; uma palavra proferida pelo primeiro transeunte, o latido de um cão, uma tabuleta, a forma de uma nuvem, a musica de um realejo, tudo me gera uma ideia... Eis porque eu tenho confiança!...
Assim falando, o provençal enchera o cachimbo; e como o seu cartucho de tabaco ficara vazio, desenrolou-o maquinalmente, e alisou-o sobre o joelho.
- Olhe! acrescentou ele, mostrando o papel; quando me acho em embaraços, leio um anuncio, abro um jornal, ou o primeiro impresso que se me depara... este, por exemplo, e zás! uma ideia me.. .
Interrompeu-se de súbito, e o seu olhar ficou fixo no pedaço de papel, que lhe estava servindo para demonstração...
- Com mil amarras! exclamou ele, com voz tonante e erguendo-se de chofre.
- Que foi?... interrogou o pintor, erguendo-se também. O velho fez-se amarelo, logo carmesim, depois branco como um sudário, e por fim agarrou no pulso de Sauvain, e apertando-lho com força, balbuciou:
- Que numero é o desta casa?
- Oitenta e sete.
- Rua dos Mártires?
- Sem dúvida.
- Há cá alguém que se chame Germinal?
- Há, sem dúvida!... respondeu André estupefacto.
- Aonde mora?
- Aqui... ao lado... Era com ele que eu conversava há pouco!...
- Com mil raios! bradou Pedro.
E, num salto de jaguar, atravessou o atelier, abriu a porta, correu para o pátio, e chegou ao jardim, seguido do pintor, ofegante e desnorteado.