Texto - "Amor Crioulo" Abel Botelho

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Nem por isso, o nosso herói consentiria nunca em descer aos atormentados abismos da paixão ou se deixar enlear no labirinto vesgo da loucura. Mal aflorava com o desdenhoso lábio o mel turvo do prazer, saltitando despreocupado de um amor a outro amor, - epidérmicos todos, breves, fugazes, como frutos apenas mordidos e logo deitados fora. Era de ordinário a vulgaridade do instinto que o dirigia, arrastando-o não raro a cenas ridículas; mas já também, uma que outra vez, a virtude suprema da emoção, transfigurando-o, erguera-o a desgarradas alucinações de artista. Nesses altos, raros momentos de libertação, ele sofrera, numa atônita inconsciência, o puro domínio da Beleza. E agora mesmo, nesta sua voluntária demanda da Solidão, neste atuado caminhar para o Infinito, sem o amparo de uma doce mulher ao lado, o Silveira sentia o coração árido e triste como o ardido leito de uma torrente sem água... Tremeu um instante, como no terror mortal de ir transpor o vácuo, e sacudiu-o um confrangido alvoroço, uma como que compaixão de si mesmo, que o fez aprumar-se, esperto, na amurada, erguendo os inquietos olhos ao espaço, por onde lhe parecera ouvir bater um esparro do incerto de asas, e depois, com as pálpebras úmidas num ensopamento de ternura, querendo reter o perfil indeciso da cidade que lhe fugia, na magoada luz do crepúsculo, envolta em lívidas musselinas de mistério.

Para onde ia ele? Que ignorados destinos o aguardavam lá longe, nesse novo grande mundo, para ele um enigma, e onde tudo era colossal - o progresso e a barbárie, a miséria e a riqueza?... Interrogações que naturalmente lhe acudiam e vinham, frequentes, carregar-lhe a inculta mas viva inteligência. Vagamente sentia que o homem que viaja aumenta sempre e a cada momento enriquece a sua bagagem impressionista interior, a qual, bago a bago, se vai então encerrando, como um precioso tesouro sentimental, no barco das íntimas recordações, das lembranças carinhosas. Cada povo, cada ambiente, cada país, cada raça deixam aí a sua marca indelével, e essas pitorescas estratificações são outras tantas parcelas novas que vêm somar-se à história da nossa vida, despertando-nos cordas inéditas no sentir ou alargando a latitude moral da experiência. Não eram estas coisas postas bem a claro nem sentidas nitidamente pela insuficiência mental de João da Silveira; nitidamente, contudo, ele sabia, - isso sim! - ser a América do Sul terra de lindas mulheres; e o relâmpago desta promessa acirramento fazia-lhe o passo leve, encrespava-lhe a medula e acendia-lhe o desejo. Depois, havia ainda que ver os seus sócios de viagem, havia que observar e indagar quem, canta e que qualidade de gente vinha ali a bordo com êle. Sem que soubesse explicar-se bem porquê, tomava-o êste antecipado encanto dos conhecimentos adquiridos em viagem, breves contactos de almas volitando ligeiras entre os dois infinitos do céu e do mar, qualquer coisa de adorávelmente vago, de efémero e profundo ao mesmo tempo. São como que brisas do sentimento: se não prendem o coração tonifica a alma.

Os primeiros dois dias de viagem, até à Madeira, foram maus. Tempestade constante. Aquele primeiro mormaço ameaçador engrossara e fechá la té disparar na trágica violência dum temporal desfeito. A chuva, a cerração, o mar revolto e o sudoeste rijo, soprando contrário, atrasaram o barco e com êle jogavam perdidamente, sacudindo o transatlântico em rijas convulsões que reduziam a arrogância industrial do seu poderoso arcabouço a proporções irrisórias. Nada estava seguro, pairava-se indeciso na comoção e na treva. De quando em quando, varria de lés a lés a embarcação uma ráfaga mais intensa, e tudo então a bordo dançava, estalava, tiritava e gemia, no estrangulamento brutal da garra do Desconhecido. Grupos descalços de marinheiros, trotando rápidos, faziam, aqui, ali, a sua aparição fantástica, cerrando escotilhas, aprontando escaleres, correndo presto a manobra. E agora, a intervalos, na opacidade da noite como tinta, acima do ranger do cavername do monstro e do rugir cavo das águas, por sobre toda essa brava orquestração da Morte roncava e erguia-se alarmante o grosso apitar da máquina em desespêro.

E era como se não houvesse vivalma ali dentro. A ninguém era permitido estacionar nos salões, no bar ou nas cobertas; mas de horas antes que perante a ameaçadora fúria do vendaval, poucos se sentiam em segurança, e daí que uns pelo enjôo, outros pelo terror, outros por mera prudência, tudo, na timorata demanda do seu beliche, fôra sucessivamente desertando. João da Silveira, tomado dum indefinível mal-estar, com a cabeça como chumbo, descera também ao seu camarote, que era situado num dos extremos do barco, formando esquina, junto à prôa. Tinha uma ventanilha sobre o mar e outra sobre aquele ângulo avançado da coberta, descobrindo assim um trecho dessa renovação iníqua das galés, essa enorme grilheta ambulante, onde, sob um miserável toldo, à intempérie, ao abandono, no mais absoluto desamparo, na mais sórdida promiscuidade, num baralhamento ignóbil de idades, de sexos e de raças, rolando ao áspero sabor da tormenta, como lastro, como calhaus, como lodo, como viva espuma, seguiam, empilhados a monte, os passageiros de 3. ^a classe. Foi a primeira sorte de gente que, a bordo, se lhe antolha ver mais de perto; tinha agora ali assim, ao alcance inevitável, próximo da atenção, misérias, tristezas, espantos, dores que até ao momento êle arredará sempre com dureza do seu coração, de ordinário avesso à piedade. Agora tinha que forçosamente senti-las, ouvia-lhes o singelo relato das suas penas e angústias, chegavam-lhe lamúria dos protestos, tímidos gritos de rebelião, surdas frases dolorosas; começava a interessá-lo o aspecto resignado, humilde, sofredor daquelas rôtas máscaras de agonia, vinha-lhe o fartum nauseabundo da comida que lhes serviam; e durante a sua primeira noite de mar, noite de pesadelo, noite de insónia, noite de incomportável pavor, em que a madorna do cansaço lhe era a cada momento posta em sobressalto pelo súbito martelar dos mais estranhos ruídos, - o ferrolhar brusco de cremalheiras, silvos raspantes de abordagens, choques brancos de metais, rangidos como rasgões, estalidos como pragas, - quem, neste poema de extermínio, dava ainda a nota mais sinistramente aguda, era essa atormentada fandublagem humana, quando, sobre o convés encharcado rojados à mistura, os seus altos gemidos em súplica rasgavam ululantes o espaço, formando um concertante macabro com o alarido bárbaro da tormenta.

Quando o Almería conseguiu por fim fundear, frente à Madeira, a caligem persistente no céu, as grossas cordas de água e as vagas alterosas não permitiam fácil às pequenas embarcações acercaram-se do paquete, e furtam relativamente à contemplação do Silveira a maravilha habitual desse cenário paradisíaco, - o amoroso encanto da luz, a aragem perfumada do ambiente, a graça ingénua das construções, o azul translúcido das águas, a esmeraldina frescura, o contôrno sensual daquele monte atrevido de colinas salpicadas de claras harmonias, o deslumbramento sem par e a euritmia incomparável dêsse atrevido anfiteatro pagão, único no mundo, apenas agora entrevisto pelos claros farpados na neblina, como através um entremeio de renda. Entretanto, bojo acima da pequena cidade flutuante, os vários decks começavam a animar-se; de tôda a parte surgiam lindos rostos timoratos, cautelosos bustos, ou enérgicos perfis, duras e arrogantes linhas masculinas, incrédulos ainda, ávidos, curiosos, abertos numa cantante expressão de alívio ou movidos numa alegre inquirição de interêsse; miravam-se solícitos, acercaram-se efusivos e palheiros, formando novos grupos de acaso, intromis quando-se, reconhecendo-se, beijando-se; no salão aparatoso da 1. classe, todo em boiseries e estofos, os compassos da orquestra espraiam-se em molhadas ressonâncias; no extremo oposto, pela grossa atmosfera heteroclita do bar, as rôlhas do Champagne saltavam, preludiando estúrdia mente o distanciar do perigo. Mas o Silveira, de fito sempre ao largo, não cessava de considerar o deslumbramento panorâmico da ilha; e então viu como de roda do grande barco, arfante ainda é a escorrer, sobre a juba crespa e revôlta do mar, dezenas de lanchas bailavam doidamente, em riscos de, num choque mais violento, se estilhaçaram contra o colosso, na impossibilidade duma aproximação tranqùila. E notou que vinham atulhadas de emigrantes, outros tantos míseros foragidos como aqueles seus tristes vizinhos de bordo, uns centos mais de desgraçados que iam ser pasto da voragem insaciável dessas regiões intérminas onde fulgura o mito precário da riqueza; protéico enxurro humano, encarnação polimorfa da desgraça na demanda hipotética da fortuna. Eram carne votada à gleba, vítimas forçadas da iniqùidade económica, a quem nem por isso o duro mercantilismo reconhecia a importância do seu valor, como utilidade social. Eram lágrimas que vão trocar-se em pérolas, vidas heróicas que vão fundir-se em oiro, e que, não obstante, são tidas por nada por aqueles mesmos para quem o seu descraziante esfôrço é tudo. Eram almas tratadas como coisas, e que ali em baixo esperavam transidas, no mar em cólera, sob a chuva, que os usassem como fardos miúdos, como valores mercantis, como bagatelas, como bugiarias, como sucata, por uma corda. A operação era primitiva: atados em pequenos molhos por um grosso cabo, sem escolha, não importa como nem por onde, lá vão subindo em cachos, escorrendo água, atualmente, morosamente, - as mães com os filhos a dorso, chorando, agitando no espaço as mãos como vermes; os velhos pendendo resignados na frouxidão da impotência; os moços ganhando distância em arrancadas simiescas, e todos numa ânsia da alternância movendo os olhos pávidos entre a promissora segurança do navio, ao alto, e em baixo a fúria glauca do abismo.

Passada, porém, a Madeira, o tempo amainara, e agora, enquanto a dupla hélice do Almería fazia o seu arroteio manso de espuma, pela imensidade movediça do oceano o espelhamento límpido do céu prolongava-se, águas adentro, em opalinas suavidades, em claridades duma transparência infinita. Como conseqùência, a bordo restabelecia-se a tranqùilidade e pelas diferentes coberturas a mancha buliçosa e a sonora chalra dos viajeiros alastraram, cruzavam-se, demandam-se e cresciam numa algarada cantante de alegria. Á hora de comer, já noite, João da Silveira baixou, entre os primeiros, a ocupar o lugar de acaso que lhe haviam indicado e êle aceita docilmente, no seu altaneiro desdém por aquela camaradagem fortuita de gentes vindas não sabia bem onde e destinadas a desvanecer-se pronto, finda a viagem, no distanciamento vago da indiferença. Era o único lugar que havia ainda vago, numa pequena mesa para cinco talheres. Sentou-se. Até àquele momento, mal havia tido ocasião de encarar os outros comensais, abotoados naturalmente na constrangida reserva em que se nos fecha de ordinário a expressão, à vizinhança de estranhos; porém, agora começava a vê-los sob um novo aspecto, voltava cada um aos seus gestos habituais, mutuam-se olhares de confiante inquirição, saùdavam-se efusivos, seguros, contentes. Fizera-os comunicativos a simultânea vibração do perigo. Á direita tinha o Silveira um curioso espanhol, abundante, palreiro, grosso tipo de homem roçando pelos 50 anos, calvo, vermelhaço, grandes dentes ralos nos grossos lábios gretados e roxos, a barba grisalha curta e mal cuidada. Vestia com vulgaridade, e na lapela usada do smoking ostentava a roseta de Isabel a Católica, sofrivelmente suja. À esquerda ia um italiano, já entrado em anos também, ponderado, gordote, a pelugem flácida das olheiras denunciando um grande viveur, a pele rosada e fina passada de cosméticos, um ar importante, as mãos muito cuidadas. Seguia depois um jovem chileno, irrequieto, pomposo, farta cabeleira revôlta pastichando a indumentária cerebral dum génio, um colarinho mole inverosímil, os olhos negros e ardentes como carbúnculos, os dedos como que modelando incansavelmente no espaço abstrusas, incompreendidas formas, O quarto comensal era um puro gentleman, de finas maneiras, olhar inteligente e doce, um riço buço incipiente sobre a lisa cútis morena pingando, e uma linha geral atraente, correcta, comedida.