Texto - "A agua profunda" Paul Bourget

feche e comece a digitar
Há certos provérbios que, passando de um país para outro, tomam uma fisionomia tão diferente, que bastaria uma tal variação para provar que os caracteres nacionais se conservam na realidade radicalmente distintos e irredutíveis.

O francês, por exemplo, diz, a respeito de um homem feliz "que nasceu implicado", e o inglês "que nasceu com uma colher de prata na boca".

Dois rifões, duas raças, dois destinos: de um lado um povo volúvel, espirituoso, elegante, amando a galanteria, apaixonado pelo prazer e naturalmente divertido;-do outro lado uma nação a vida, dominada pelo positivo e que até no luxo quer o conforto.

São aqueles dois traços característicos que ressaltam de um primeiro provérbio; vejamos outro.

Alguém muito circunspecto diz o francês: "não há pior água do que a água quieta", o italiano: "as águas tranquilas destroem as pontes" e o inglês: "as águas tranquilas correm profundas". E os três têm razão.

O francês é tão expansivo e sociável, que uma alegria que não comunique não é completa; um pesar que guarde no íntimo do seu coração é um dobrado pesar. Julga os outros por si, e, na presença de alguém menos expansivo, está desconfiado.

O italiano, por natureza refletido e previsto, possui a desconfiança no mais elevado grau. Vê na reserva uma ameaça, no silêncio uma cilada, é que Maquiavel era de Florença, do inglês onde a astúcia é sempre acompanhada da gravidade, e o maquiavelismo fez carreira. Orgulhar-se-há com a bela alegoria que pinte uma arca de Noé, resplandecente de luz, sobre o glauco Arno ou o Tibre flávio.

Nos ingleses o espírito realista é acompanhado da mais tácita e meditativa melancolia.

Observar uma carta do seu inglês e vereis como Manchester está nas proximidades dos lagos e do condado de Wordsworth.

A cada momento empregam um aforismo de voracidade rapace. Têm contudo uma graça rude que não perdem ainda mesmo nos momentos mais críticos. E a verdade é que o Anglo-Saxão se nos apresenta na sua história e na sua literatura: duramente brutal, quando é brutal e excessivamente sonhador, quando é sonhador.

Estas duas pequenas frases encerram uma grande verdade.

É, porém, justo que se diga que os casos de psicologia étnica têm inúmeras excepções.

A prova está na recordação desse poético provérbio inglês sobre as "águas profundas" que o meu espírito me sugeriu ironia no próprio momento em que pretendo contar uma aventura parisiense, sucedida no outono passado, e cuja heroína não tem, com certeza, nas veias a mínima gota de sangue britânico. E, contudo, nenhuma imagem me parece resumir melhor a impressão que em mim produziu esse pequeno drama sentimental, quando me foi referido, em íntima confidência, cujo mistério respeitarei.

Tendo-se desenrolado essa tragédia íntima, sem escândalo, entre um pequeno número de personagens, bastará uma simples troca de nomes para conservar um incógnito cuja necessidade o leitor reconhecerá certamente, desde que admita, apesar da singularidade de certos detalhes, que tudo n'ele é verdadeiro.

Terminada a narração, compreenderá a leitora, se se interessou pelos segredos da delicada mulher cuja história se faz na Água Profunda, que irresistível coincidência compeliu o historiador deste episódio romanesco a inscrever na sua primeira página a synthese do velho provérbio?

Encontrará também, casualmente, uma espécie de símbolo no contraste frisante entre o cunho parisiense dos lugares e do meio onde se desenrolaram os incidentes d'esta crônica de costumes, e a visão do que se passa além da Mancha, avocada ao espírito pelo aforismo inglês: a corrente obscura e silenciosa de um rio da Irlanda por entre os seus prados, a imobilidade vaporosa de um lago da Escócia na solidão das suas montanhas vestidas de urze?

Ainda mesmo que ela seja no fundo de uma sensibilidade afetuosa pouco comunicativa e a escrava desses deveres de severidade, desses deletérios prazeres a que obriga a infelicidade sempre cobiçada de uma situação em evidência, aquele contraste não é o de toda a sua existência?

Preferia, talvez, em volta das suas emoções, das suas esperanças, dos seus pesares, um quadro que lhe recordasse a sua própria vida: a prova de um vestido em casa de uma modista celebre; visitas em Monceau, os Campos- Elíseos, o arrabalde de S. Germano; a volta para casa; a mudança de vestuário; jantar fora ou receber; e acabar o dia em qualquer reunião com pretensões a elegante, ou no camarote de algum teatro em que se exibam peças para fazer rir.

É forçoso, porém, que estas luctas quase mortíferas do coração e do meio tenham uma espécie de atrativo doentio, disfarçado, mas bem intenso, e que correspondam, nas sensibilidades mais apuradas, a uma inexplicável necessidade de emoções violentas.

Só assim se explica que Paris e a sua sociedade-ou melhor dizendo-a mescla, fantasticamente formada, que constitui o seu grande mundo-Paris, então, e as suas sociedades (é necessário o plural) continuem a atrair, a prender um sem número de pessoas que, pela sua fortuna, são inteiramente livres e se encontram em condições de se libertar de um tal meio.

Amaldiçoam, quotidianamente, o captiveiro e a sua atmosfera moral e não se vão embora, como se não se pudesse viver noutra parte.

A anedota aqui referida, provará efectivamente como esta cidade, que realiza a cada momento a celebre frase do Imperador sobre o impossível encerra de tudo na sua decoração extravagante, até grandes almas...