Texto - "As theocracias litterarias" Teófilo Braga

feche e comece a digitar
Força-me a consciência a erguer a voz:

Estamos numa terra em que a verdade para ser ouvida precisa trazer a forma do escândalo, a não vir deste modo é uma coisa ininteligível, obscura.
Tanto melhor para quem aspira a ser entendido somente por aqueles que se pagam de sua obscuridade pela firmeza da consciência, e integridade de caráter.

A grande individualidade, resultado dos progressos deste século, vai tornando impossíveis todas as supremacias, tanto na religião, como no estado, como na arte.
É para onde confluem todos os esforços, todas as lutas; é o móbil de ação na Europa moderna.

As realezas literárias foram as primeiras que acabaram, porque se compreende de pronto, que não era o modelo acadêmico, mas o sentimento puro, que nos havia elevar à perfeição, dar-nos a percepção imediata das formas que traduzem o belo na vida.
Cada um, em vez de ir com os olhos nas pegadas do mestre, procurou desenvolver em si esse sentimento ingênito; e ao invés de arrancarem curisosidades híbridas de sua fantasia, souberam descobrir como a eternidade se alia com as criações humanas.
Passo dado pela evolução romântica.

Uma das fases mais brilhantes da vida de Goëthe, depois de se ter encarnado no Fausto e contemplado o ideal sereno do mundo antigo, as formas encantadoras de Helena, o tiposupremo do belo, depois de ter representado as lutas e revoluções com que o cristianismo abalou a alma humana, na sublime criação da Noiva de Coryntho, o vulto do pensador e poeta realiza em si a mesma perfeição plástica, sente que se transfigura a fronte envolve-se em uma majestade olímpica.
É justamente neste ponto que ele sente em si uma realeza, a idade avança, a púrpura está quase a cair-lhe dos ombros, substituída pelo sudário.
Então lança os olhos pela mocidade da Alemanha à busca do eleito.
Vem de toda a parte consultar o vidente sentado no marco miliário da vida; o que ele diz grava-se como uma sentença, é o vaticínio em que dá a apoteose ou a obscuridade.
Apesar da intuição e ciência do belo, que é nos seus resultados semelhante ao sentimento de justiça, quantas vezes não foi o semideus da arte injusto nas suas apreciações?
Novalis, a alma mística da Alemanha, a melancolia das elevações íntimas que caracteriza a nacionalidade de Tauler, Hans, Sachs, Ruysbroeck, não foi avaliado por Goëthe.
O pagão não compreende os devaneios crepusculares, os anseios vagos de uma alma que aspira o perfume da rosa mística do cristianismo.
Goëthe foi uma vez injusto na sua vida, quando desprezou o pobre poeta Novalis.

Que diferença entre Goëthe e o Sr. Castilho?
A mesma que dá um zero por denominador.
Contudo, entre nós, como se vê pelas suas obras, ou talvez por esta infância perpétua que lhe encontram os seus admiradores, que é essencialmente imitadora, procura também no último quartel da vida aclamar-se o árbitro supremo da literatura, e cobrir com os retalhos da sua púrpura as chagas e aleijões dos áulicos, decretando-lhes a admiração pública, e impondo-os a posteridade.
Cabia aqui, para todos, o bom dito de Voltaire a propósito da Epístola de J.B Rousseau à posteridade.
Se estas coisas fossem feitas por leviandade natural da senectude, ao menos tínhamos a certeza de que lá estavam as bem aventuranças que dariam por prêmio o reino do céu.
O aparecimento de um livro é uma das melhores tertúlias para o Sr. Castilho; aparece logo como estes homens que vão a todos os enterros.

Esta frase usual de república das letras significa mais do que se pensa; a inteligência não reconhece majestades, nem hierarquias, vive da igualdade plena, e tanto, que é este o dom maravilhoso da razão, a uniformidade de processos para uma igualdade de resultados, a verdade.
Carta do Sr. Anthero do Quental coloca na sua verdadeira altura o que significam estas insinuações pérfidas contra a escola de Coimbra, as atenções equívocas, e a animação clandestina aos adeptos que lhe vão na pista apodando com insolências e banalidades todo o impulso dado ára sairmos das superfetação mesquinhas a que entre nós se chama arte.
A carta versa sobre o bom senso e o bom gosto, e é pela carência destes dons que se adquire o principado da lira.

Ao lerem-se as páginas desse protesto, que há de vir a ser um capítulo da história da literatura contemporânea, sente-se vibrar em cada palavra um sentimento ilimitado de justiça, como a sabem sentir os corações novos, ou os homens que têm sofrido, vítimas da perversidade dos outros.
Este mesmo sentimento de justiça, que é sempre a principal inspiração da poesia do Sr. Anthero do Quental, traduzida na sua forma mais austera do dever, dá-lhe um vigor lógico à dicção; dotado das qualidades que fazem admirável um estilista, imaginação e uma situação generalizadora, é nesta carta que vemos melhor caracterizado o seu gênio.
Tema a franqueza de linguagem, o desenfado de quem se fia na dialética firma, a penetração que segue um princípio até às mais remotas conclusões.

Alma recentíssima de Proudhon, compreensão e tenacidade de Feuerbach, o Sr. Anthero do Quental obedece à fatalidade de sua natureza.
Tem todos os dotes para um terrível pamphlétaire.
Ele serve-se da sua obscuridade e despreocupação literária para que este protesto não seja um ressentimento, mas lhe dê direito a julgar desassombradamente, com frieza e boa fé.
Nesta carta admirável há dois elementos distintos que o autor soube combinar de uma maneira condigna do talento; é a seriedade com que discute as ideias, o lirismo com que se apossa delas, e o ridículo que se derrama sobre as ninharias das nulidades altivas.

Cumpre fazer um reparo.
O público julgará por certo um desacato, vir um homem, afrontando todas as conveniências, o respeito à velhice, a admiração sancionada por todos, e demonstrar a exiguidade do Sr. Castilho.

Todos nós sabemos o que particularmente se pensa e se diz do autor da Jovem Lília, como caracter e como artista, mas uns diante dos outros não se atrevem, talvez por servilismo, a proclamar a verdade crua.
O Sr. Castilho assiste de dia para dia ao esfacelamento do seu caráter, índole viperina, reservado, como o rancor de cego, bifronte como o deus antigo cujos fatos ainda não comemora, não tem, não tem direito a esta sagração que vai santificando a idade e o trabalho.