Texto - "Contos Fantásticos" Teófilo Braga

feche e comece a digitar
Quem sabe se é o amor que a transporta assim para as solidões, como a
pomba que vai esconder-se na rocha alcantilada? O amor que esmalta a
vida de harmonias e encantos, que acorda as virações para levarem longe
o pólen fecundante, que abre o cálice das flores para as abelhas
tocarem os nectários deliciosos, que une o gemido do regato tépido com
o ruído, brando que adormece, do canavial que orna as margens sinuosas?
O amor é um amplexo, a identificação; como poderia divorciando-a com a
vida, mudar a sua alegria em uma tristeza que é como o pressentimento do
sepulcro? Aquele segredo incomunicável oprime, a terra como a esfinge
propondo o enigma.

Ela cada vez andava mais desfalecida, pendia de cansaço, ofegava; mas
procurava iludir os desvelos da família com um vigor que não tinha,
como sucede ao náufrago quase a aferrar a terra, de que a ressaca da
onda o afasta, e que hesita se deve lutar mais tempo, se deixar-se
engolir nas voragens do oceano. Gravitaria ela em volta de um mundo em
que procurasse absorver-se, e a vida da terra, de cá, fosse como o
refluxo que a impelia para longe? Pobre flor, que se debruça nas bordas
da sepultura, será uma ilusão quanto a sua alma ingênua sente? Serão
uma mentira todas as harmonias que se modulam lá dentro? O tapiz verde
da relva fresca, lúbrica, que a chama para vir doidejar ali num volteio
feérico, febril, esconder-lhe-ia o lodo de um charco estagnado que a ha
de engolir para sempre?

Tenho medo de vê lá assim, com os olhos fitos no horizonte, nessa
morbidez do êxtase; a vertigem pode sacudiu-a, e precipitar-se, como a
borboleta prateada e indiscreta. A sua alma eleva-se para o céu; porque
voa tão cedo para cima a névoa da madrugada, de uma alvura intente? A
andorinha quando parte, voa na asa da rajada hibernal que a arrebata.

Mas o mundo acariciou-a sempre; porque se esconde pois e foge dele?
Será a reminiscência viva do foco de luz de onde saiu, que lhe inspiram
tamanha ansiedade, e lhe abre na alma uma saudade vivíssima, que mata? Às
vezes está tranquila, imóvel, como quem escuta a toada de um concerto
mavioso que embala e com que se adormece. Oh, quem ousará despertara-a?
Seria perturbar a cristalização de uma gota de orvalho que se transforma
em perola. Outras vezes tem o olhar impávido, firme, de quem contempla e
pasma ante uma visão imensa e augusta. Que aparição risonha irá falar-lhe?
Eros, na solidão remota da noite? Será o desejo de vê-lo, o
desalento do impossível, que a fazem se concentrar assim nessa dor?
Uma lágrima era a gota do óleo aromático da lâmpada escondida; em vez
de faze-lo desaparecer, envolto na nuvem branca e etérea, a lágrima
traze-lo-hia como um grande astro que atraem após si miríades de planetas.

A tarde declinava amena, festiva, com o último lampejo de graça que
deixa pressentir já a melancolia do outono. Emma ergueu-se da mesa; o
rosto estava deslumbrante de transfiguração, possuída do sentimento do
infinito, que lhe dava uma expressão sobre humana, excelsa, que se não
podia fitar, semelhante á Seraphita enlevada nas iluminações
swedenborgianismo, ao transpor os precipícios icários, inacessíveis dos
fiordes da Noruega.

Naquela tarde parecia opressa por uma angústia mais íntima. Segui-a,
queria admira-la na altura a que se remonta, queria que me fizesse
herdeiro do seu manto profético, no instante em que se livrasse no
carro de fogo, como Elias. E ela era bem a profetisa do deserto.
Aproximei-me. Estava serena e plácida, como quem mergulhará no oceano
da contemplação. De mais perto vi que dormia, com um sono hipnótico.
Ficara-lhe um sorriso estampado nos lábios; parecia o invólucro de uma
crisálida misteriosa; a borboleta voará para a luz, abandonara-o na
terra.

Conservava então um livro sobre o regaço; a mão inerte repousava sobre a
página. Um leve sinal notava uma frase profunda em que a alma se lhe
absorverá: "Um anjo está presente a um outro, quando ele o deseja."

Procurei ver de quem era o livro. Era escrito por Swedenborg, o
patriarca dos teosofia do norte, o que levou mais longe as relações
com o mundo invisível. O livro intitulava-se: A sabedoria angélica da
onipotência, onisciência, onipresença dos que gozam a eternidade, a
imensidade de Deus.

Emma acordou de súbito. Senti um estremecimento de terror, começava a
compreender a sua solidão. Eu mesmo tinha estudado a segunda vista,
corrigido alguns fenômenos de sugestão que se passavam no meu
espírito, conseguira por uma excitação nervosa perene a hipnotização
voluntária.

Também no livro De varietate rerum descreve Jeronymo Cardan a
faculdade que tinha de experimentar o êxtase espontâneo, e de tornar
objetivas as imagens criadas na sua mente: "Quando eu quero, vejo o
que me apraz, e isto não só com o espírito, mas com os olhos, com
essas imagens que eu via na minha infância. Mas agora creio que elas
são o resultado de minhas ocupações. É certo que nem sempre possui esta
faculdade, contudo não a tenho senão quando quero. As imagens que eu
vejo estão sempre em movimento; é assim que vejo as florestas, os
animais, os diversos países e tudo quanto eu quero ver. Creio que a
causa de todos estes efeitos está na atividade da minha imaginação e
numa vista penetrante cima. Desde a minha infância tinha de comum com
Tibério César o poder ver na obscuridade mais profunda, como em pleno
dia. Porém não conservei muito tempo esta faculdade. Apesar disso vejo
ainda alguma coisa, posto que não posso distinguir bem o que vejo; e
atribuo este efeito ao calor do cérebro, à subtileza dos espíritos
vitais, à substância do olho, e a energia da imaginação."

É esta uma qualidade vulgares cima nos povos do norte, principalmente os
insulares, conhecida sob a denominação de Second Sight. Ali a
imaginação tendo pouca variedade de paisagem que a fecunda, volta sobre
si o que há edificado e exagera lhe as proporções. Por isso as
teogonias do norte são terríveis. As avalanches suspensas a
precipitaram-se, os nevoeiros difundidos por toda a parte como um
sudário imenso e frio, a aurora dos polos a desdobrar-se esplêndida,
tudo faz sonhar de um mundo fantástico, escutar essas toadas vagas,
indefiníveis dos espíritos que se anunciam pelo ressoar de uma harpa
longínqua. O dom da visão é comum; é assim na ilha de Ferroe. Que
virgens se não ostentam numa aparição repentina, e que o vidente
procura, sem nunca mais poder encontrar-as! Balzac, o observador sem
igual do coração, sentiu toda a poesia do norte no poema de Seraphita;
é um mistério, o enlace da filosofia e da poesia, um êxtases
indecifrável de Swedenborg, contemplado nas fiordes da Noruega. O
delírio de Seraphita é o problema incessante da percepção imediata; o
seu amor é mais puro que o ideal de Diotima, é ele que lhe dá a
segunda vista.

Taisha Trim e Phissichin são os nomes que em língua gaélica se dão
aos que tem esta faculdade. Os fatos observados são inúmeros,
o seu estudo é dos nossos dias. Kant combateu a doutrina visionária de
Swedenborg, mas não atendeu que este fenômeno físico era todo
sentimental; viu no patriarca dos videntes do norte um impostor. A vida
exemplares cima de Swedenborg é um desmentido completo e irretorquível
dos argumentos desta ordem.

Como explicar a inspiração continua, a segunda vista? A alma paira
entre dois mundos físico com que se relaciona pelos sentimentos, o
físico com que se relaciona pelos pressentimentos; se é atraída para
o mundo dos corpos, predominam nele os instintos, e as sensações,
todas relativas, só lhe advém pela presença dos objetos; se a alma por
um desejo veemente se eleva do estado de animação de espíritos, os
sentimentos desprendem-se do nexo das relações terrestres, e
conhecem tudo independente das sensações pela representação subjetiva.
É o que acontece aos poetas, cantando a beleza de formas não sonhadas,
a reminiscência de harmonias não ouvidas.