Texto - "Amor de Salvação" Camilo Castelo Branco

feche e comece a digitar
A gente das cidades pergunta-me em que país do mundo florescem, em
Dezembro, bouças e montados.

Respondo que é em Portugal, no perpétuo jardim do mundo, no Minho, onde
os inventores de deuses teriam ideado as suas teogonias, se não
existisse a Grécia. No Minho, ao menos, se buscarem águas límpidas para
Castanhas e Hipócrates. No Minho, a Cythera para a mãe dos amores. Nos
arvoredos desta região de sonhos, de poemas, e rumores de conversarem
espíritos, é que os sátiros, as dríades e os silvamos sairiam a
cardumes dos troncos e regatos: que tudo aqui parece estar dizendo que a
natureza tem segredos defesos ao vulgo, e como a entreabrir-se á
fantasia de poetas.

Mas que flores... quer o leitor saber que flores vestem os calvos e
denegridos serros do Minho, em Portugal. São flores a festões, cachos de
corolas amarelas, viçosas, e aveludadas como as dos arbustos cultivados
em jardins: é a florescência dos tojais, plantas repulsivas por seus
espinhos, alegres de sua perpétua verdura, únicas a enfeitarem a terra
quando a restante natureza vegetal amarelece, definha, e morre. E
desse privilégio como que o agreste arbusto se está gozando
soberbamente; pois que vos mostra as suas pinhas de flores, e com os
inflexíveis espinhos vos defende o despoja-o delas.

E naquele dia 24 de Dezembro de 1863 andava eu no Minho, por aquela
corda de chás e outeiros, que abrangem quatro léguas entre Santo
Thyrso, Famalicão e Guimarães.

Eu, homem sem família, sem mão amiga neste mundo, há trinta anos
sozinho, sem reminiscências de carícias maternas, bem-quisto apenas
d'uns cães, que pareciam amar-me com a cláusula de eu os sustentar e
agasalhar; eu, que, naquele tão festivo dia da nossa terra, não tinha
colmado onde me esperasse um amigo pobre para me dar entre os seus um
lugar no escabelo, nem parente abastado, que de mim se lembra se á
hora dos brindes com generosos vinhos em lúcidos cristais, eu, vendo-me
com lágrimas em minha sombra, assim me fora a contemplar a felicidade
alheia pelas chás e outeiros do devoto Minho.

Eu caminhava a pé, guiando-me ao sabor da imaginativa ideia, que se
deleitava em vestir de folhagem a árvore nua, e tristemente inclinada
sobre o comando do casalejo. Parava em frente de cada choupana, e
meditava, e escutava o rumor das vozes que lá dentro, ou no receio da
horta, se misturavam em dizeres alegres ou cantilenas alusivas ao
nascimento do Deus-menino. Diante dos portões gradeados do proprietário
rico é que eu não parava, nem meditava. Se lá dentro de suas salas iam
alegrias, como em casa do jornaleiro, não sei: o certo era que as
paredes da habitação opulenta não deixavam sair uma nota para o hino
geral de graças e júbilo com que a pobreza saudava o Emancipador dos
deserdados, o Senhor dos mundos, nascido e agasalhado nas palhinhas de
um presépio.

O sol, desnublado de vapores, como nas tardes serenas de Julho,
oscilava nas montanhas do poente, e azulejar as grimpas dos
pinheirais, de onde eu, a contempla-o, me esquecera da distância a que
me alongaria da casa hospedeira daquela noite. Transmontano o sol,
desceu das cumeadas um toldo pardacento a desdobrar-se pelos plainos, a
confundir-se no fumo das aldeias, a identificar-se com o escuro dos
arvoredos. Fez-se um silêncio progressivo e rápido em redor de mim.
Começava a noite sem bafejo de vento. Nem já a rama dos pinhais
rumorejar aquele seu saudoso sonido, que se me figura sempre a
inarticulada toada de mui remontadas e remotíssimas vozes de mundos que
giram nas profundezas do espaço.

Tirei-me do meu enleio contemplador, e retrocedi pelo mal sabido atalho,
antes que a cessação completa me tolhesse de enxergar ao longe o alvejar
da casa, entre dois outeiros. Não valeu a precaução. Às abas do
declivoso montado, eram muitos os caminhos a cruzarem-se. Segui um á
sorte; e, como prova de que a sorte nem em escolha de caminhos deixou de
ser-me sempre boa, segui o pior é o mais transviado de todos. Por volta
de sete horas, depois de dobrar uns sarros inabitados, achei-me numa
póvoa, onde me disseram que eu, por aquele caminho, chegaria mais cedo
a Roma que ao local onde me destinava.