Vem o Inverno e os montes pedregosos, as árvores despidas, a natureza
inteira envolve-se numa grande nuvem úmida que tudo abafa e penetra.
As coisas de-las-íeis recolhidas e cismáticas.
É como um rolo misterioso e profundo que vem dum mar desconhecido. E a
chuva começa. É um ruído doce o da chuva. Faz sonhar em tantas coisas
idas e tristes! Primeiro a terra embebe-se e incha. E, depois de cheia,
a torrente jorra até polir as pedras: ara na terra, põe raízes à mostra,
arrasta no aluvião o húmus, as folhas secas das árvores, os cadáveres
dos bichos, os detritos desagregados das rochas, que rola juntos,
dispersa e reúne, atira, entre a baba da água, para um destino ignoto.
Assim a vida. É um rio de lágrimas, de brados, de mistério. A onda turva
põe as mais fundas raízes à mostra, a torrente leva consigo de roldão a
desgraça e o riso; sem cessar carreira este terriço humano para uma
praia, onde as mãos esquálidas dos que sofreram encontram enfim a mão
que os ampara, onde os olhos dos pobres, que se fartaram de chorar,
ficam atônitos diante da madrugada eterna, onde todo o sonho se
converte em realidade...
Verde... É noite. A ventania redobra e nas lufadas que passam viajam
gritos, catástrofes, lamentos. Sou pobre e transido e nada sei da vida,
mas sou um príncipe. De que terra? direis.-Do sonho. E assim neste
prédio revolvido me quedo, sozinho e triste, a escutar... Ouço um rio
que os mais não sentem. Cada criatura nascida traz consigo uma fonte,
fio de água umedecendo a frincha duma pedra ou levada impetuosa e aos
jorros. É ela que tira à vida a sua secura. Em certas criaturas pobres
e simples quase se ouve essa água correr e tão amoravelmente, que dá
vontade de nos chegarmos à sua sombra. É emoção. Minai, não na deixeis
secar: se finda torna-se a vida como os chãos sequiosos.
Neste casarão onde moro a toda a hora se ouve o ruído da levada; corre
sempre como as torrentes desordenadas e esplêndidas. Escutai!... Prega o
Inverno bravio, o vento e os aguaceiros passam, mas escutai, escutai!...
São meus vizinhos, lá embaixo mulheres perdidas, ao pé de mim dois
casados, e na trapeira um gato-pingado, a quem chamam S. José. As
mulheres passam às vezes na rua, com xales púrpuras a rastro; o gato
pingado só sai à noitinha, à hora dos morcegos. Mais tímido que eu,
encontro-o nas escadas a tossir, com o peito escalavrado e roto.
Para que vive esta ralé? Levantam-se derreados, para cavar, para berrar,
para que lhes dêem um pedaço de pão e só se deitam no sepulcro. Caminho
sem sonho. Da vida coube-lhes este quinhão amargo: o cansaço, a
humilhação e a fome.
Se passam pelas árvores, num dia de Primavera, tão lindo, que até as
próprias macieiras de comovidas se vão desentranhando em flor, sabeis o
que acontece? As árvores retraem-se, as coisas calam-se ao vê-los
passar cobertos de suor, calçados e gastos. Para que é que eles vivem
aos gritos, ofendidos, ralé, pedras, sapos? para que é que Deus os
cria?
O gato-pingado... Ei-lo que sobe. Cada passo me lembra uma pazada de
terra. É soturno este homem, esguio e magro, com o chapéu alto
embrulhado no lenço do rapé e a casaca dobrada no braço. Nunca fala.
Estou mesmo em dizer que não pensa, este avejão que só sai para os
enterros. Deve ser mau, deve ser duro: nunca decerto chorou. Os garotos
apedrejam-no quando ele passa pela rua, esguio, vesgo, de chapéu alto
e casaca, rígido clown da morte, que em lugar de gargalhadas toda a
sua vida ouvisse lágrimas. Aposto que, quando arrancam das casas os
caixões como quem arranca o coração dos vivos, ao ouvir gritos, tem um
riso interior, júbilo de quem está farto de viver só, arredado,
humilhado... Gato-pingado! Gato-pingado! Vive de lágrimas, sustenta-se
de dores. E quando vai, de tocha acesa, esguio, a galgar atrás dum
carro funerário, na relés mascarada, em que irá ele a pensar,
esbaforido e triste?
inteira envolve-se numa grande nuvem úmida que tudo abafa e penetra.
As coisas de-las-íeis recolhidas e cismáticas.
É como um rolo misterioso e profundo que vem dum mar desconhecido. E a
chuva começa. É um ruído doce o da chuva. Faz sonhar em tantas coisas
idas e tristes! Primeiro a terra embebe-se e incha. E, depois de cheia,
a torrente jorra até polir as pedras: ara na terra, põe raízes à mostra,
arrasta no aluvião o húmus, as folhas secas das árvores, os cadáveres
dos bichos, os detritos desagregados das rochas, que rola juntos,
dispersa e reúne, atira, entre a baba da água, para um destino ignoto.
Assim a vida. É um rio de lágrimas, de brados, de mistério. A onda turva
põe as mais fundas raízes à mostra, a torrente leva consigo de roldão a
desgraça e o riso; sem cessar carreira este terriço humano para uma
praia, onde as mãos esquálidas dos que sofreram encontram enfim a mão
que os ampara, onde os olhos dos pobres, que se fartaram de chorar,
ficam atônitos diante da madrugada eterna, onde todo o sonho se
converte em realidade...
Verde... É noite. A ventania redobra e nas lufadas que passam viajam
gritos, catástrofes, lamentos. Sou pobre e transido e nada sei da vida,
mas sou um príncipe. De que terra? direis.-Do sonho. E assim neste
prédio revolvido me quedo, sozinho e triste, a escutar... Ouço um rio
que os mais não sentem. Cada criatura nascida traz consigo uma fonte,
fio de água umedecendo a frincha duma pedra ou levada impetuosa e aos
jorros. É ela que tira à vida a sua secura. Em certas criaturas pobres
e simples quase se ouve essa água correr e tão amoravelmente, que dá
vontade de nos chegarmos à sua sombra. É emoção. Minai, não na deixeis
secar: se finda torna-se a vida como os chãos sequiosos.
Neste casarão onde moro a toda a hora se ouve o ruído da levada; corre
sempre como as torrentes desordenadas e esplêndidas. Escutai!... Prega o
Inverno bravio, o vento e os aguaceiros passam, mas escutai, escutai!...
São meus vizinhos, lá embaixo mulheres perdidas, ao pé de mim dois
casados, e na trapeira um gato-pingado, a quem chamam S. José. As
mulheres passam às vezes na rua, com xales púrpuras a rastro; o gato
pingado só sai à noitinha, à hora dos morcegos. Mais tímido que eu,
encontro-o nas escadas a tossir, com o peito escalavrado e roto.
Para que vive esta ralé? Levantam-se derreados, para cavar, para berrar,
para que lhes dêem um pedaço de pão e só se deitam no sepulcro. Caminho
sem sonho. Da vida coube-lhes este quinhão amargo: o cansaço, a
humilhação e a fome.
Se passam pelas árvores, num dia de Primavera, tão lindo, que até as
próprias macieiras de comovidas se vão desentranhando em flor, sabeis o
que acontece? As árvores retraem-se, as coisas calam-se ao vê-los
passar cobertos de suor, calçados e gastos. Para que é que eles vivem
aos gritos, ofendidos, ralé, pedras, sapos? para que é que Deus os
cria?
O gato-pingado... Ei-lo que sobe. Cada passo me lembra uma pazada de
terra. É soturno este homem, esguio e magro, com o chapéu alto
embrulhado no lenço do rapé e a casaca dobrada no braço. Nunca fala.
Estou mesmo em dizer que não pensa, este avejão que só sai para os
enterros. Deve ser mau, deve ser duro: nunca decerto chorou. Os garotos
apedrejam-no quando ele passa pela rua, esguio, vesgo, de chapéu alto
e casaca, rígido clown da morte, que em lugar de gargalhadas toda a
sua vida ouvisse lágrimas. Aposto que, quando arrancam das casas os
caixões como quem arranca o coração dos vivos, ao ouvir gritos, tem um
riso interior, júbilo de quem está farto de viver só, arredado,
humilhado... Gato-pingado! Gato-pingado! Vive de lágrimas, sustenta-se
de dores. E quando vai, de tocha acesa, esguio, a galgar atrás dum
carro funerário, na relés mascarada, em que irá ele a pensar,
esbaforido e triste?