Texto - "Ao de Leve" Brito Camacho

feche e comece a digitar
Reuniam-se todas as noites fora de portas, em casa de um tasqueiro de boa
reputação, homem de letras gordas, mas de princípios severos, incapaz
de faltar á sua palavra, preferindo mil vezes a morte a uma vilania. De
modo que para este não havia segredos, nem para a sua companheira, uma
velhota gorducha que teimava em não ter filhos depois de casada,
farta de os ter em solteira. Bem entendido, o tasqueiro não tomava parte
nas discussões; mas quando ele entrava com o peixe frito e a caneca, de
chinelas, com um lenço encarnado a chapar-lhe o suor da cachaceira,
ninguém recolhia a fala ao buxo, porque se sabia que ele era incapaz de
uma traição, ou mesmo de uma imprudência.

Ele bem sabia do que se tratava; mas fingia não saber nada,
correspondendo, com extremos de correção, à penhorante confiança que
tinham nele. Tratava-se de substituir um porco por um leitão, o que
tudo vinha a dar numa tremenda porcaria. Mas os conspiradores
mostravam-se encarniçados na sua ideia, crendo nele como nas pílulas
Pink, ou no xarope da mãe Seigel. A unanimidade não era completa, e como
uma noite resolvessem não sair dali sem assentarem em alguma coisa de
definitivo, um deles lembrou que se ouvisse a opinião do tasqueiro,
homem de letras gordas, mas de princípios severos, mais inteligente do
que seria preciso para exercer a sua profissão, e discreto como um
túmulo. Por maneira que quando ele entrou, o lenço encarnado a
chapar-lhe o suor do cachaço, a travessa do peixe frito na mão esquerda,
e na direita um formidável canjirão, espumante de vinho verde, um dos
conspiradores pose-lhe nitidamente a questão, e pediu o seu parecer:

- Eu cá, por mim, não entendo dessas coisas; mas sempre ouvi dizer que
a racha sai ao madeiro, e meu avô, que andou nas guerras, e sofreu
primeiro por causa de D. Miguel, e sofreu depois por causa de D. Pedro,
costumava dizer à gente, quando se falava dessas coisas - creio que há
uns reis piores do que outros; que haja melhores, não acredito.