Texto - "Contos" João da Câmara

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O sol despedia os raios mais vividos. O suão aquecido nas cinzas das queimadas soprava abrasador. Via-se tudo em volta como através de vidros amarelos.

O caminho era ruim, apenas indicado por velhos muros afogados em silvas e cheios de musgo como ferrugem, que lidavam as tapadas. No meio da estrada erguiam-se de espaço a espaço enormes penedos, que ainda conservavam os furos das brocas, mostrando um trabalho abandonado de um dia para outro, falta de dinheiro, alguma eleição perdida. Massas enormes de granito esbranquiçado erguiam-se de uma e outra banda, umas por cima das outras, acasteladas. Por entre as pedras cresciam as giestas sequinhosas, cujo fructo crepitava abrindo-se aos beijos do sol e deixava cair a semente na terra. Nos pontos mais elevados reshiram do trêmulo azul celeste uns carvalhos raquíticos e tortos, que não davam sombra.

Ele caminhava alegre, estrada fora, parando de vez em quando para escolher nos cachos das amoras, que reluziam ao sol, as menos maduras, avermelhadas, rijas, cujo acido lhe mitiga a sede.

Ainda vinha com o seu bigode, com as calças de linho e as botas pretas de soldado, em que brilhavam como lantejoulas os pedacinhos de mica do granito desfeito.

O gosto com que ele diria lá na terra ao Antonio: - Deite-me isto abaixo, ó mestre, e talhe-me nesta cara uma suissa como a que eu tinha d'antes e a tinha meu pae, que Deus haja.

E passava a unha pela cara, satisfeito, marcando a suíça que havia de usar.

O gosto com que atiraria para o lado aquelas botas engraxadas, a mortificaram -lhe os pés e que, apesar do bom tamanho, lhe pareciam botas de senhora, boas, quando muito, para o domingo, quando fosse à missa. As botas altas, brancas, de bom salto de prateleira muito commodo é tão bom para andar, lá tinham ficado penduradas num prego, defronte da lareira, muito bem ensebadas e recomendadas. Tinham umas trombas, é verdade, mas eram botas amigas. Como havia de calçar-as, contente, para sair com ellas para o trabalho, quando vem rompendo a aurora, quando o céu é cheio de luz e ainda não há sombras na terra!

Ia morto por voltar aos hábitos velhos, à santa vida do campo.

Lembrava-se, cheio de saudades, das boas histórias, que se contam pela estrada fora, na volta do trabalho, caminhando lentamente através dos burros, que, de orelhas muito cahidas, projetam na alvura da poeira sombras de gigantes.

O que hão de rir os ganhões com as histórias novas que ele traz do quartel!

Quase ao chegar à vila, ao pé da volta da estrada, um nadinha para baixo, á direita, é a fonte. Quando ali se chega, grita-se chó! aos burros, pára-se um bocado a conversar e contente -se com as raparigas que passam de bilhas á cabeça, bem aprumadas, de ancas fortes e caras sadias, com uns fios de dentes, que o pão de centeio torna muito brancos, como folhinhas de malmequeres, e que elas gostam muito de mostrar, abrindo em grandes risos, por qualquer dichote amável, as boccas muito vermelhas, mais frescas e perfumadas que uma ginja.

Aquele bocado de tempo era sempre o melhor do dia.

E, ao pensar na fonte, alargou o passo.

É coisa aborrecida estar de sentinela duas horas, uma noite de inverno. E a água pela valeta a correr, barrenta, cheia de espuma, precipitando-se na sarjeta, com uma bulha muito triste, muito monótona, tão diferente do estrépito das ribeiras quebrando as águas nos rochedos das voltas!

Ele pensava na fonte e nos teus lábios vermelhos. E o tempo assim lá passava mais depressa.

Um outro, ás vezes, tão triste como ele talvez, gritava-lhe de uma guarita perdida na treva:

-Sentinella, álérta!

E ele respondia, engrossando a voz:

Alerta está!... Sentinela alerta!

E, emquanto os gritos repetidos se iam perdendo ao longe, recaia no mesmo pensar constante, a fonte, sempre a fonte, e triste, sempre triste.

Mas afinal estava livre! Naquela mesma tarde, à hora em que as chaminés começam fumegando e debaixo das parreiras, enquanto a ceia aquece, se toca alegremente nas buzinas, estaria batendo à porta de casa, disfarçando a voz, fingindo ser um pobrezinho a pedir esmola e agasalho.

E ria feliz com aquela idéia divertida.

A alegria da mãe! Era capaz de morrer de gosto a pobre velha, coitadinha!

Sabe Deus, quantas vezes, quando ele pelas madrugadas frias tremia enregelado na guarita, não molhava ela com lágrimas o travesseiro, a chorar a sua pobreza.

Receberá duas cartas d'ella muito ternas, cheias de notícias e de conselhos. Pedia a todos que lhas dessem e por fim sábias -as de cór; trazia-as sempre consigo entre a fardeta e a camisa, mettidas n'um saquinho de couro, para se não estragarem.

E, ao lembrar-se de que afinal o tempo, de que tantas saudades tivera, ia novamente voltar, enchia-se-lhe a alma de alegria, e caminhava ligeiro, cantando em voz de falsete uma cantiga do S. João.