Tinha cessado a faina geral de suspender âncora. Os marinheiros estavam todos em seus postos, alerta á primeira voz, silenciosos, enfileirados a bombordo a boreste, alguns convenientemente distribuídos na popa, na proa e nas cobertas do cruzador.
Noite escura e chuvosa, cheia de nevoeiro e tristeza, fria, sem estrelas, cortada de clarões longínquos. Tão escura que se não distinguia um palmo diante do nariz, tão feia que os bicos de gaz da cidade, soturna e quieta, bruxuleava palidamente com a sua luz trêmula e vacilante...
E contudo estamos a 19 de Fevereiro, em plena estação calmosa, no rigor do verão.
Chove todo o dia. O céo conservava-se coberto de nuvens bojudas e côr de chumbo, velando uns restos de lua.
Um grande silêncio de alto mar alastrava-se por toda a bahia do Rio de Janeiro. Somente ao longe, para os lados da cidade, badalar o sino de uma egreja, compassado e lúgubre.
De vez em quando passava rente com a pôpa do Barroso o vulto sombrio e largo de uma barca Ferry, com o seu pharol de côr, deserta, indistincta, e que desaparecia logo na escuridão.
Seria meia noite quando o navio começou a mover-se lentamente, caminho da barra, cheio da silenciosa melancolia dos que partiam, e uma hora depois a cidade, as praias, e as montanhas sumiram -se na distância, como se o mar às fosse engolindo com a voracidade de um monstro.
Restava apenas um ponto luminoso, uma visão microscópica da terra fluminense; era o pharol da ilha Rasa tremeluzindo, como pálpebra somnolenta, através da noite.
E todos a bordo, todos silenciosamente, egoístas na sua dor concentrada e incomunicável, mandaram ainda um -adeus- profundamente saudoso á vida alegre e ruidosa do Rio.
Dizem que o homem do mar é insensível aqueles que nunca viram esta realidade: a lágrima da saudade brilhar na face de um marinheiro.
Lá fomos mar afora...
Pernambuco foi o primeiro porto da nossa escala.
Viagem monótona, sem acidentes notáveis, essa do Rio ao Recife. As horas sucediam -se numa uniformidade tediosa e imperturbável. Sempre o mar, sempre o céu, ora sombrios, ora azuis...
Durante o dia 21 avistamos, e isso nos consolou, uma vela que bordejava, muito branca, triste garça irradia no horizonte luminoso.
Para quem viaja no mar uma vela que se avista é sempre motivo de innocente alegria O marinheiro com especialidade gosta de segui la com o olhar nostálgico até perdeu -a completamente. É como ao avistar-se terra depois de longa travessia: sente-se a mesma impressão bôa e indefinível.
Na manhã de 26- leste -oeste com o pharol de S. Agostinho, e às onze horas recebemos o prático.
Impossível entrar nesse dia, por falta de maré: passámos a noite fora, no Lamarão, aos solavancos, vendo, por um óculo, a cidade do Recife, iluminada e bela, hombro a hombro com a legendária Olinda dos holandeses e dos banhos de mar.
Na falta de outro assumpto falou se de história pátria.
Pela manhã de 27 o Barrozo sulcava as águas do Lamarão, lento e majestoso, crivado de olhares. O povo saudava-o do cais da Lingueta. Espalhou-se logo que o príncipe D. Augusto, neto do imperador, vinha a bordo, e toda a gente correu a recebel-o com essa avidez instintiva das massas populares. O povo pernambucano, tradicionalmente inimigo dos imperadores, lembrava-se do tempo em que o Sr. D. Pedro de Alcântara dava-se ao luxo de visitar o norte.
Mais tarde, ao desembarcar a turma de guardas-marinha, de que fazia parte o príncipe, subiu de ponto a curiosidade pública.
- Oh! o príncipe! - Que é dele? - É um ruivo? - É aquele barbado?
O pobre moço viu-se em apuros, e mudava de côres, e fez -se escarlate, e vociferava contra a plebe, ocultando - se entre os colegas, desapontado. Um preto velho teve a lembrança de ajoelhar-se aos pés de S. A. e suplicar -lhe uma esmola. Aconteceu, porém, que errou o alvo e foi direito a um outro rapaz, louro e rubro, como o príncipe, que se apressou em desfazer o engano.
O imperial senhor achava-se ridículo no meio de toda aquela multidão servil e anonyma que o acompanhava, como se visse nele um animal selvagem...
É assim o povo - ingênuo, pueril.
Visitamos, em romaria, os principais edifícios públicos: a Penitenciária, a Assembléia Provincial, o Gymnasio, o Teatro.
A nova Penitenciária do Recife é um belo edifício no gênero.
Impressiona tristemente esse casarão sombrio com escadarias de ferro, onde mal penetra a claridade meridiana.
Há criminosos de toda a espécie, em cujos semblantes retratam-se delictos tenebrosos. Nada, porém, nos comoveu tanto como a história do preso Gustavo Adolpho, que, há quase vinte anos, cumpria a terrível sentença a que fôra condenado. Era um desses sentenciados sympathicus que inspiram compaixão a quem os observa de perto.
Noite escura e chuvosa, cheia de nevoeiro e tristeza, fria, sem estrelas, cortada de clarões longínquos. Tão escura que se não distinguia um palmo diante do nariz, tão feia que os bicos de gaz da cidade, soturna e quieta, bruxuleava palidamente com a sua luz trêmula e vacilante...
E contudo estamos a 19 de Fevereiro, em plena estação calmosa, no rigor do verão.
Chove todo o dia. O céo conservava-se coberto de nuvens bojudas e côr de chumbo, velando uns restos de lua.
Um grande silêncio de alto mar alastrava-se por toda a bahia do Rio de Janeiro. Somente ao longe, para os lados da cidade, badalar o sino de uma egreja, compassado e lúgubre.
De vez em quando passava rente com a pôpa do Barroso o vulto sombrio e largo de uma barca Ferry, com o seu pharol de côr, deserta, indistincta, e que desaparecia logo na escuridão.
Seria meia noite quando o navio começou a mover-se lentamente, caminho da barra, cheio da silenciosa melancolia dos que partiam, e uma hora depois a cidade, as praias, e as montanhas sumiram -se na distância, como se o mar às fosse engolindo com a voracidade de um monstro.
Restava apenas um ponto luminoso, uma visão microscópica da terra fluminense; era o pharol da ilha Rasa tremeluzindo, como pálpebra somnolenta, através da noite.
E todos a bordo, todos silenciosamente, egoístas na sua dor concentrada e incomunicável, mandaram ainda um -adeus- profundamente saudoso á vida alegre e ruidosa do Rio.
Dizem que o homem do mar é insensível aqueles que nunca viram esta realidade: a lágrima da saudade brilhar na face de um marinheiro.
Lá fomos mar afora...
Pernambuco foi o primeiro porto da nossa escala.
Viagem monótona, sem acidentes notáveis, essa do Rio ao Recife. As horas sucediam -se numa uniformidade tediosa e imperturbável. Sempre o mar, sempre o céu, ora sombrios, ora azuis...
Durante o dia 21 avistamos, e isso nos consolou, uma vela que bordejava, muito branca, triste garça irradia no horizonte luminoso.
Para quem viaja no mar uma vela que se avista é sempre motivo de innocente alegria O marinheiro com especialidade gosta de segui la com o olhar nostálgico até perdeu -a completamente. É como ao avistar-se terra depois de longa travessia: sente-se a mesma impressão bôa e indefinível.
Na manhã de 26- leste -oeste com o pharol de S. Agostinho, e às onze horas recebemos o prático.
Impossível entrar nesse dia, por falta de maré: passámos a noite fora, no Lamarão, aos solavancos, vendo, por um óculo, a cidade do Recife, iluminada e bela, hombro a hombro com a legendária Olinda dos holandeses e dos banhos de mar.
Na falta de outro assumpto falou se de história pátria.
Pela manhã de 27 o Barrozo sulcava as águas do Lamarão, lento e majestoso, crivado de olhares. O povo saudava-o do cais da Lingueta. Espalhou-se logo que o príncipe D. Augusto, neto do imperador, vinha a bordo, e toda a gente correu a recebel-o com essa avidez instintiva das massas populares. O povo pernambucano, tradicionalmente inimigo dos imperadores, lembrava-se do tempo em que o Sr. D. Pedro de Alcântara dava-se ao luxo de visitar o norte.
Mais tarde, ao desembarcar a turma de guardas-marinha, de que fazia parte o príncipe, subiu de ponto a curiosidade pública.
- Oh! o príncipe! - Que é dele? - É um ruivo? - É aquele barbado?
O pobre moço viu-se em apuros, e mudava de côres, e fez -se escarlate, e vociferava contra a plebe, ocultando - se entre os colegas, desapontado. Um preto velho teve a lembrança de ajoelhar-se aos pés de S. A. e suplicar -lhe uma esmola. Aconteceu, porém, que errou o alvo e foi direito a um outro rapaz, louro e rubro, como o príncipe, que se apressou em desfazer o engano.
O imperial senhor achava-se ridículo no meio de toda aquela multidão servil e anonyma que o acompanhava, como se visse nele um animal selvagem...
É assim o povo - ingênuo, pueril.
Visitamos, em romaria, os principais edifícios públicos: a Penitenciária, a Assembléia Provincial, o Gymnasio, o Teatro.
A nova Penitenciária do Recife é um belo edifício no gênero.
Impressiona tristemente esse casarão sombrio com escadarias de ferro, onde mal penetra a claridade meridiana.
Há criminosos de toda a espécie, em cujos semblantes retratam-se delictos tenebrosos. Nada, porém, nos comoveu tanto como a história do preso Gustavo Adolpho, que, há quase vinte anos, cumpria a terrível sentença a que fôra condenado. Era um desses sentenciados sympathicus que inspiram compaixão a quem os observa de perto.