Texto - "Entre as Nymphéas" João Marques de Carvalho

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Quedei-me ali muito tempo, a seguir esta ordem de pensamentos.

No entanto, o céu fôra devassado pelo hilariante clarão com que este bendito sol da minha terra doira todas as coisas, em sua munificência de soberano insuplantável. Por toda a parte, só uma coisa via: luz, luz, luz, esse alastrar de claridade que penetra tudo, que dá aos objetos uma aparência de alegria, de intenso júbilo paradisíaco!

Pelo ar, cantavam sempre a brisa e as aves, estas menos talvez do que aquela, comprometida a fazer a larga harmonia da alegoria volata.

A clareira formava agora um salão redondo alcatifado de velludo esmeraldino, iluminado de uma orgia de raios, vibrante da deliciosa bacchanal dos passarinhos.

Minha alma dilatava-se mais no gozo, até ali experimentado, de tamanha quietude, de tão profunda sensação do que é grato na liberdade.

O isolamento! Quanta paz na situação que esta frase traduz! Que suaves delícias que meigo langor frue o espírito no sossego completo, divorciado dos cuidados da vida commum, senhor enfim de sondar a consciência própria, com a qual anda, às vezes, semanas inteiras sem ter um só instante para escutar-lhe as impressões, para confabular com ella, extremado dos sêres banaes e falsos que formam a nossa roda habitual!

Haverá porventura alguém que não preze esses momentos de silêncio, nos quaes a alma fala consigo própria, dizendo coisas há muito sentidas e que, entretanto, parecem-lhe, -quando examinadas, -estranhas novidades jamais ouvidas?

Lembro-me agora da attenta concentração em que surpreendo, algumas vezes, no alto das ramarias, esses folgazões alados que gargantear a todo instante crystalinas fioritures sonoras. Dir-se-ia monologar, resolvendo ponderoso assumpto, tal a profunda gravidade com que pendem a cabecinha, como recolhidos ao mais íntimo de si mesmos.

Conheci um cenário ao qual este gênero de melancolia era habitual. Valente cantor, adorado em toda a vizinhança pelo talento com que desferir os seus belíssimos gorjeios, valia a pena ver -o, quando espanejar -se ao sol, muito arripiado e gracioso, revolvendo com o bico, em rápida imersão, a água do pequenino tanque de cristal da gaiola doirada onde vivia.

Tirava horas inteiras para cantar, saltitante e feliz! Podia dizer-se que empenhava-se em fazer um impossível, ou que pretendia matar-se em um excesso melódico e genial, superior às forças de seu mesquinho ser de passarito delicado!

Porém detinha-se de repente, entre um trinado e um silvo: detinha-se, interrompendo os elegantes pulinhos e, imóvel na travessa principal, ficava ali demorados momentos, a curvar a loira cabeça para um e outro lado, com uma seriedade que poderia fazer sorrir a quem, superficial e leviano, não ponderasse no mistério daquele inesperado recolhimento em que uma alma sonhadora e romântica parecia despertar n'ele com intercadencias fatais.

Terão também os pássaros o prazer do solilóquio, a volúpia da meditação? Terão também a percepção dos gosos inebriantes que provém da certeza de estarmos sós, - absolutamente sós, que ventura! - enfim libertados da tyrannia das convenções, capazes de desafivelar a máscara que atuam -nos á face os respeitos mundanos?...

Bem quisera crer na existência, deles, de um poder de reflexão, pois d'outro modo não sei explicar aquela postura tão estranha, aquelle ar philosopho, essa expressão quase humana, - tão humana, que surpreende!

É que, de certo, sentem o valor do sossego, da paz completa, do tranquilizador influxo da solidão, cujos inefáveis encantos fascinam, penetram o organismo de uma tepidez emolliente, dão este bálsamo incomparável: -a alegria de viver!

E como assim não acontecer, visto que as aves são as dominadoras do espaço, os habitantes da matta, onde é de todo sensível o poder do isolamento, d'esta situação, que pode ser considerada egoísta e destruidora, porém que o meu espírito acaba de começar a compreender, a reverenciar, a amar com descompassados enthusiasmos, porque vae-lhe perscrutando os largos arcanos de poesia e alento philosophico, o vigor que insufla a mente para aprofundar-se no estudo subjetivo, no conhecimento do eu, a desilusão a que arrasta-nos em relação às pequenas misérias odientas do mundo postiço dos falsos e dos pretensos civilizados?...

Glória ao isolamento! Bemdita sejas, ó grande floresta amazônica, osculada pela ardente paixão do sol, toda sonora dos folguedos da passarada chilreando, rica de estranhos mistérios e de misteriosas riquezas inestimáveis!