Texto - "Pelo mundo fóra" Maria Amália Vaz de Carvalho

feche e comece a digitar
Abril tudo em flor, atira em flocos a sua neve perfumada aos troncos ha pouco despidos; os castanheiros agitam os seus penachos brancos; os lilases saturam a atmosfera do seu cheiro estonteador; há uma expansão risonha neste paraíso artificial criado pelo home, que se não encontra infelizmente nos nossos países do Sul, onde o solo é tão fecundo, onde a Natureza um pouco acariciada e auxiliada se desentranharia em maravilhas de produção!

A nós basta-nos o sol ardente e a vida brutal de que cousas palpitam no nosso verão africano; não sabemos pelo trabalho incessante, inteligente e metódico criar estes paraísos, onde repousa depois inefavelmente a frenética atividade do homem do Norte.

A mim, filha de um país acidentado, esta paisagem plena, em que as alamedas se desdobram lentas, ajestosas à parte do céu, faz-me uma impressão de deliciosa calmaria. Não me canso de olhar para as árvores, as formosas árvores, enormes, colossais, de um verde tenro, de um verde ruço, de um verde malva, de todas as gradações imagináveis do verde, e em que a nota do verde esmeralda, mais rara, aparece de vez em quando como uma estridula fanfarra de côr.

Do alto da torre de Eiffel, Paris aparece todo entrecortado de manchas negras de arvoredo - Não há cidade com mais árvores, digo eu verdadeiramente abismada ao meu companheiro e cicerone que me responder: - Londres ainda tem mais!

Só nós portuguezes, com uma terra maravilhosa, um céu esplêndido, um clima em que a flora de todas as zonas igualmente se domestica, somos incapazes pela nossa inércia proverbial de ter esta abundância adorável de arvoredo, de verdura maciça em torno de nós!

As alamedas de Saint Cloud, com os cimos verdes entrelaçados, formando a abóbada sobre a cabeça dos transeuntes, pareceriam um bocadinho de floresta selvagem, se não fosse a invasão da burguesia e do povo vestido de gala que ao domingo positivamente as inunda e analisa, tirando ao sonhador que alli foi acariciar a sua chimera íntima todo o gozo que ele podia beber na solidão.

Quando de Saint Cloud, por uma tarde serena e doce e luminosa de Abril, se regressa a Paris, como eu regressei, pelo caminho ao longo do Sena, entre o renque fino e tenro dos choupos que se debruçam nas águas do rio, e os chalets e os palacetes que espreitam do outro lado da estrada do meio dos jardins coalhados de lilases e de rosais em flor, não há coração por mais secco e positivo que resista ao encanto embalador deste passeio.

Surpreende-se uma pessoa a ser moça outra vez, moça e romanesca e a arranjar na phantasia uma existência que quereria ter vivido ali, n aquela paz tão próxima da infinda agitação, naquele ermo tão chegado ao burburinho de uma vida em festa.

Deve ser bom viver e sonhar ali, perto do mundo e tão longe dele, a minutos de distância do boulevard da Yvette Guilbert, a deusa da chansonnette moderna, da Comédie e da sua clássica e correcta interpretação da arte, do Chat Noir e da sua phantasia revoltada, e ao mesmo tempo tão longe de tudo isto, no silêncio do arvoredo em flôr, na serenidade pantheista da dormente e calma Natureza, no seio inebriante dos lilazes e das rosas que estimulam voluptuosa lethargia de cada pétala da sua flor aveludada e tenra...

A vida para certos organismos de eleição só se comprehende nestes dois pólos contrários. Ou tudo que a civilização tem de mais quintessencial e de mais extremo, ou tudo que a natureza tem de mais calmo e demais permanente.

Juntar as duas coisas seria para o verdadeiro artista o ideal, mas que poucos são os que as sabem ou querem reunir!...

Pensava eu estas cousas vagas, ao passar diante de Bagatelle, a casa campestre e o lindíssimo parque, que surgiram com tão vertiginosa rapidez de uma aposta entre a infeliz e então leviana Maria Antonietta e o Conde de Artois, e que hoje, depois de várias vicissitudes - as casas e os homens passam igualmente por ellas - pertence aos herdeiros do célebre philanthropy William Wallace. A lembrança desse tempo, dessa côrte, dessa mulher, cujo nome se fez prestigioso no martyrio, levaram a minha imaginação para longe, para bem longe no passado.

Fazia justamente cem anos que tanto luxo tanto prestígio, tanta glória tradicional se tinham afogado tragicamente em ondas de sangue.

Noventa e tres, o ano fatal, surgia sangrento e trágico ante os meus olhos, produzindo em mim aquele espanto e aquela fascinação que eu sempre sinto quando voluntária ou involuntariamente o evoco.

Ela também, a pobre rainha martyr, quis experimentar essa suprema sensação da vida feita de contrastes fortes; também ela quis, ao lado das pompas de Versailles, a deliciosa pastoral do Trianon; também ella, despindo os pesados brocados e as sedas tecidas com ouro da côrte, quis enfiar, ligeira e garrida, o vestidinho de cassa, com o lenço castamente cruzado sobre os seios opulentos; a sua imaginação romanesca de leitora de Rousseau, de admiradora de Gluck, também se soube comprazer nesta delicia das experiências contrárias que é o sol do diletantismo, mas nem porque viveu intensamente a vida e gozou tudo que ela tem de melhor, desde a amizade até á arte, lhe foi menos pesada a sua cruz, nem menos cruel a sua dolorosa via desde Versailles até á Guilhotina.

O ambicioso coração humano deseja tudo, a tudo aspira e tudo quer!

E para que, no fim de contas? lá o diz Pascal na sua frase incisiva e sombria: o remate é sempre idêntico, qualquer que tenha sido a comédia ou a tragédia que o antecedeu.

E aqui está como a vista do arvoredo de Bagatelle me levou para longe do bucolismo, encontrado, onde meu Deus?... a dois passos da fornalha de Paris!...