Texto - "A Chave do Enigma" Antonio Feliciano de Castilho

feche e comece a digitar
É uma grande pena que as crianças não saibam escrever, e não registrem, para depois as lerem, as suas memórias, e que a torrente caudalosa dos sucessos ulteriores desgaste-lhes e confunda quase todas; a sua história poderia ser muito mais gentil, muito mais elegante, muito mais instructiva, que as histórias e novelas de outras idades.

Á mingoa de taes documentos, que bem preciosos me seriam agora, fui ontem 19 de dezembro deste 1861 visitar, ao cabo de tantos anos, lugares tão queridos, e evocar deles os phantasmas verdes dos arbustos do meu tempo, o phantasma cândido daquele que eu tantas vezes arraiá, como gentil Maia, á custa deles, e o meu próprio phantasma pequenino, alegre, buliçoso, tão puro, tão amante, e diante do qual, como diante d'ella, eu me ajoelharia, se o encontrasse.
Palpitava deveras ao aproximar -me, como sem falta deve acontecer a quem se acerca de um lugar de mistérios, ou a quem escava um solo, de que espera entesourar relíquias santas da antiguidade.
Parecia-me que o mal transparente véu, que, tanto ha, me colocou o mundo numa penumbra, de repente se levantaria por um milagre da vontade e do affecto, e que eu ia rever tudo tal como o levava no coração e na saudade.

Ai ninho de tantas delícias! Quem se atreveu a desfazer-te! De tudo que ali havia, e que era tantissimo, quase que só eu resto! Não importa: profanados, perdidos mesmo, esses lugares conservam, indelével ainda para a minha alma, a sua primitiva sagração.
Tornarei a visita -os na próxima primavera; talvez se me recordem então do que ontem só confusamente lhes lembrava; encontrarei porventura valverdes florídos, ranunculus matizados, quinquag sem descendentes, e mais, dos que tão suavemente brilhavam no meu tempo; e esses alguma coisa saberão relatar-me de tão antiga história.
O pórtico viçoso, estrellado de jasmins, que bordava de sombras graciosas o vestido branco de Amália, quando, abrigados ali num meio dia de verão, escutamos as cigarras emboscadas, há -de pôr força com a sua fragrância falar-me d'ella, e avivar-me no espírito um cardume de sensações lyricas inefáveis.

Por agora, que estou ditando a uma légua de distância estas páginas, talvez indiferentes a todo o mundo, e frias como a estação em que nascem, que me acho diante de outras árvores nuas, que aguardam, saudosas como eu, dias de festa, o mais que posso dizer é que a primeira impressão photographica da bela Natureza, toda esplêndida e de uma admirável nitidez, foi ali que a minha mente a recebeu.
Um tal quadro, que tinha de me ficar no santuário íntimo para todo sempre inspirativo, fecundo, milagroso, e contendo a synthese da galeria do Universo real e imaginário, mal poderá haver tido tal perpetuidade e tal virtude, se lá m'o não colocassem uma fada e um gênio, uma mulher e um amor; mulher recém - caída das estrelas e ainda ignorante da sua destinação; amor puro como o dos Anjos encarregados de enfeitar a Natureza, e que, terminada a tarefa, dormitam entre os obeliscos que levantaram, e sonham céo.

Assim, ao mesmo tempo que as minhas forças medrava a olhos vistos de dia para dia, e que os diversos receios das duas mães diminuíram de manhan para manhan ao alegre florir do meu aspecto, se foi a minha índole compondo com duas religiões, que afinal se reduzem a uma só: o culto das gêmeas e eternas amantes universais, - a Natureza e a Mulher.