Luís saiu para o colégio ainda criança e de lá para as escolas superiores; assim os anos tinham decorrido sem que nunca mais visitasse a terra natal.
Dez anos, dez longos anos se tinham passado, e só agora voltava, como um foragido ou como um ladrão, que enlouquecer de saudades arrisca a vida e a liberdade para rever a terra que primeiro conheceu e é sempre para o homem a mais querida, a mais bela, a melhor de todas.
E pobre Luís! era na verdade como um foragido que voltava, escondendo-se para que não o vissem, envergonhado dessa fraqueza sentimental que já não ia nada bem com os seus galões de gurda marinha e o seu bonito bigode a enlouquecer-lhe o lábio superior.
E voltava amesquinhado aos seus próprios olhos, ele que se julgava tão importante pelos estudos transcendentes, que seguirá com certo brilho, porque só agora compreendia o sacrifício de cada momento, a luta de cada hora, o verdadeiro heroísmo obscuro e respeitável que a sua educação representava na vida da família.
Compreendia, afinal, um pouco tarde demais para que a consciência lhe ficasse limpa de remorso, quanta mentira santa fôra preciso inventar, com quanta delicadeza envolver as palavras, quanta história arquitetar para que ele aceitasse sem desconfiança o propositado afastamento em que o tinham conservado durante esse longo período de tempo.
Chegará por vezes a pensar, as poucas ocasiões em que repararam nisso, que o desprezavam, que era um pária, que os pais afastam receando a vergonha de o apresentarem como seu herdeiro e continuador.
Dizia-lhe a consciência que tal procedimento não era justo, porque - se é verdade que não fôra nunca um estudante desses que se mostram com desvanecido orgulho, carregados de distinções e prémios que esmagam o próprio dono e irritam os companheiros, - é certo que o curso lhe sahira limpo, seguido como de empreitada, numa indiferença risonha de quem o levava com uma perna às costas.
Lembrava-se de pensar às vezes no fato, um tanto irritante, do seu afastamento sistemático da casa paterna, e pôr-se consigo a acusar os país; mas á mais leve referência acudia uma carta de Eduarda, que varria do seu coração, volúvel e bondoso, a desconfiança cruel.
Era sempre a mesma delicadeza inteligente, procurando as palavras para não magoar nem esclarecer, fugindo graciosamente numa pergunta mais nítida, dizendo pouco em longas cartas, que satisfaziam plenamente a sua ansiedade de momento mas muito deixavam escondido nas dobras da alma que se não pode expandir, sob pena de infelicitar os outros.
Eduarda, apenas mais velha dois anos do que Luís, fôra desde criança uma pequena figura simpática de mulher, dessas mulheres adoráveis sem deixarem de ser profundamente humanas, ou talvez por isso mais adoráveis ainda, que tudo compreendem, por tudo se interessam, para todos são a providência, o refúgio e a esperança.
Quando fôra resolvida a sua entrada para o colégio militar, Luís ficará radiante. É que essa admissão fôra o seu maior empenho, a ambição de largos meses e dias - desde que na terra aparecerá, a propósito de qualquer festa pública, um regimento de lanceiros, que o tinha enlouquecido com o seu ar soberbamente marcial e as bandeirolas, vermelho e branco, a planejarem ao sol.
Não pensava noutra coisa senão naquela sua entrada para o colégio em que todos os alunos são já pequeninos homens, pequeninos militares de botões reluzentes, barretina, dragonas, e duma compostura grave de disciplina rígida.
Fazia projetos, contava as peças do enxoval, que a mãe lhe ia empilhando na mala, lia e relia a relação das coisas que lhe mandavam levar e prometia a si mesmo só quebrar o seu, mealheiro de barro quando tivesse já a farda, para ir tirar o retrato de grande uniforme.
Mas quando chegou o dia da partida e viu à porta o carro em que devia seguir, os criados arrastando as malas, o pai gritando porque não estavam as coisas em ordem - e o comboio não espera! - quando viu a mãe soluçante por ver partir o mais novo, o mais fraquinho, o preferido - todos o sabiam - o Luís perdeu a coragem. E chorou, chorou intensamente, num soluçar fundo, próprio dessas naturezas impulsivas, febris, doentias, a que os nervos emprestam uma acuidade dolorosa, embora passageira, nas sensações.
E ella, a irmãzita, já com a orla do vestido a procurar o cano da bota, a trança loira cahida pelas costas, o corpo airoso e fino ainda sem o quebrado das linhas feminis, não tivera lágrimas que correspondem àquela dor excessiva, nem palavras que consolasse aquela alma desolada.
Sorria até, para esconder uma ligeira tremura significativa no labiosito ainda criança, mas o seu olhar era límpido, e a face, ligeiramente enrubescida, em coisa alguma trata o esforço enorme de vontade que a sua atitude representava. É que era realmente heroica aquela criança que represava as lágrimas, bem naturais no entanto, para encobrir o seu legítimo desgosto ao ver partir o irmão, o seu companheiro e amigo mais certo.
Dez anos, dez longos anos se tinham passado, e só agora voltava, como um foragido ou como um ladrão, que enlouquecer de saudades arrisca a vida e a liberdade para rever a terra que primeiro conheceu e é sempre para o homem a mais querida, a mais bela, a melhor de todas.
E pobre Luís! era na verdade como um foragido que voltava, escondendo-se para que não o vissem, envergonhado dessa fraqueza sentimental que já não ia nada bem com os seus galões de gurda marinha e o seu bonito bigode a enlouquecer-lhe o lábio superior.
E voltava amesquinhado aos seus próprios olhos, ele que se julgava tão importante pelos estudos transcendentes, que seguirá com certo brilho, porque só agora compreendia o sacrifício de cada momento, a luta de cada hora, o verdadeiro heroísmo obscuro e respeitável que a sua educação representava na vida da família.
Compreendia, afinal, um pouco tarde demais para que a consciência lhe ficasse limpa de remorso, quanta mentira santa fôra preciso inventar, com quanta delicadeza envolver as palavras, quanta história arquitetar para que ele aceitasse sem desconfiança o propositado afastamento em que o tinham conservado durante esse longo período de tempo.
Chegará por vezes a pensar, as poucas ocasiões em que repararam nisso, que o desprezavam, que era um pária, que os pais afastam receando a vergonha de o apresentarem como seu herdeiro e continuador.
Dizia-lhe a consciência que tal procedimento não era justo, porque - se é verdade que não fôra nunca um estudante desses que se mostram com desvanecido orgulho, carregados de distinções e prémios que esmagam o próprio dono e irritam os companheiros, - é certo que o curso lhe sahira limpo, seguido como de empreitada, numa indiferença risonha de quem o levava com uma perna às costas.
Lembrava-se de pensar às vezes no fato, um tanto irritante, do seu afastamento sistemático da casa paterna, e pôr-se consigo a acusar os país; mas á mais leve referência acudia uma carta de Eduarda, que varria do seu coração, volúvel e bondoso, a desconfiança cruel.
Era sempre a mesma delicadeza inteligente, procurando as palavras para não magoar nem esclarecer, fugindo graciosamente numa pergunta mais nítida, dizendo pouco em longas cartas, que satisfaziam plenamente a sua ansiedade de momento mas muito deixavam escondido nas dobras da alma que se não pode expandir, sob pena de infelicitar os outros.
Eduarda, apenas mais velha dois anos do que Luís, fôra desde criança uma pequena figura simpática de mulher, dessas mulheres adoráveis sem deixarem de ser profundamente humanas, ou talvez por isso mais adoráveis ainda, que tudo compreendem, por tudo se interessam, para todos são a providência, o refúgio e a esperança.
Quando fôra resolvida a sua entrada para o colégio militar, Luís ficará radiante. É que essa admissão fôra o seu maior empenho, a ambição de largos meses e dias - desde que na terra aparecerá, a propósito de qualquer festa pública, um regimento de lanceiros, que o tinha enlouquecido com o seu ar soberbamente marcial e as bandeirolas, vermelho e branco, a planejarem ao sol.
Não pensava noutra coisa senão naquela sua entrada para o colégio em que todos os alunos são já pequeninos homens, pequeninos militares de botões reluzentes, barretina, dragonas, e duma compostura grave de disciplina rígida.
Fazia projetos, contava as peças do enxoval, que a mãe lhe ia empilhando na mala, lia e relia a relação das coisas que lhe mandavam levar e prometia a si mesmo só quebrar o seu, mealheiro de barro quando tivesse já a farda, para ir tirar o retrato de grande uniforme.
Mas quando chegou o dia da partida e viu à porta o carro em que devia seguir, os criados arrastando as malas, o pai gritando porque não estavam as coisas em ordem - e o comboio não espera! - quando viu a mãe soluçante por ver partir o mais novo, o mais fraquinho, o preferido - todos o sabiam - o Luís perdeu a coragem. E chorou, chorou intensamente, num soluçar fundo, próprio dessas naturezas impulsivas, febris, doentias, a que os nervos emprestam uma acuidade dolorosa, embora passageira, nas sensações.
E ella, a irmãzita, já com a orla do vestido a procurar o cano da bota, a trança loira cahida pelas costas, o corpo airoso e fino ainda sem o quebrado das linhas feminis, não tivera lágrimas que correspondem àquela dor excessiva, nem palavras que consolasse aquela alma desolada.
Sorria até, para esconder uma ligeira tremura significativa no labiosito ainda criança, mas o seu olhar era límpido, e a face, ligeiramente enrubescida, em coisa alguma trata o esforço enorme de vontade que a sua atitude representava. É que era realmente heroica aquela criança que represava as lágrimas, bem naturais no entanto, para encobrir o seu legítimo desgosto ao ver partir o irmão, o seu companheiro e amigo mais certo.