Texto - "A Vinha" Ana de Castro Osório

feche e comece a digitar
Luís saiu para o colégio ainda criança e de lá para as escolas
superiores; assim os anos tinham decorrido sem que nunca mais visitasse
a terra natal.

Dez anos, dez longos anos se tinham passado, e só agora voltava, como um
foragido ou como um ladrão, que enlouquecer de saudades arrisca a vida
e a liberdade para rever a terra que primeiro conheceu e é sempre para o
homem a mais querida, a mais bela, a melhor de todas.

E pobre Luís! era na verdade como um foragido que voltava,
escondendo-se para que não o vissem, envergonhado dessa fraqueza
sentimental que já não ia nada bem com os seus galões de gurda marinha
e o seu bonito bigode a enlouquecer-lhe o lábio superior.

E voltava amesquinhado aos seus próprios olhos, ele que se julgava tão
importante pelos estudos transcendentes, que seguirá com certo brilho,
porque só agora compreendia o sacrifício de cada momento, a luta de cada
hora, o verdadeiro heroísmo obscuro e respeitável que a sua educação
representava na vida da família.

Compreendia, afinal, um pouco tarde demais para que a consciência lhe
ficasse limpa de remorso, quanta mentira santa fôra preciso inventar,
com quanta delicadeza envolver as palavras, quanta história arquitetar
para que ele aceitasse sem desconfiança o propositado afastamento em
que o tinham conservado durante esse longo período de tempo.

Chegará por vezes a pensar, as poucas ocasiões em que repararam nisso,
que o desprezavam, que era um pária, que os pais afastam receando a
vergonha de o apresentarem como seu herdeiro e continuador.

Dizia-lhe a consciência que tal procedimento não era justo, porque - se é
verdade que não fôra nunca um estudante desses que se mostram com
desvanecido orgulho, carregados de distinções e prémios que esmagam o
próprio dono e irritam os companheiros, - é certo que o curso lhe sahira
limpo, seguido como de empreitada, numa indiferença risonha de quem o
levava com uma perna às costas.

Lembrava-se de pensar às vezes no fato, um tanto irritante, do seu
afastamento sistemático da casa paterna, e pôr-se consigo a acusar os
país; mas á mais leve referência acudia uma carta de Eduarda, que varria
do seu coração, volúvel e bondoso, a desconfiança cruel.

Era sempre a mesma delicadeza inteligente, procurando as palavras para
não magoar nem esclarecer, fugindo graciosamente numa pergunta mais
nítida, dizendo pouco em longas cartas, que satisfaziam plenamente a sua
ansiedade de momento mas muito deixavam escondido nas dobras da alma
que se não pode expandir, sob pena de infelicitar os outros.

Eduarda, apenas mais velha dois anos do que Luís, fôra desde criança uma
pequena figura simpática de mulher, dessas mulheres adoráveis sem
deixarem de ser profundamente humanas, ou talvez por isso mais adoráveis
ainda, que tudo compreendem, por tudo se interessam, para todos são a
providência, o refúgio e a esperança.

Quando fôra resolvida a sua entrada para o colégio militar, Luís ficará
radiante. É que essa admissão fôra o seu maior empenho, a ambição de
largos meses e dias - desde que na terra aparecerá, a propósito de
qualquer festa pública, um regimento de lanceiros, que o tinha
enlouquecido com o seu ar soberbamente marcial e as bandeirolas,
vermelho e branco, a planejarem ao sol.

Não pensava noutra coisa senão naquela sua entrada para o colégio em
que todos os alunos são já pequeninos homens, pequeninos militares de
botões reluzentes, barretina, dragonas, e duma compostura grave de
disciplina rígida.

Fazia projetos, contava as peças do enxoval, que a mãe lhe ia
empilhando na mala, lia e relia a relação das coisas que lhe mandavam
levar e prometia a si mesmo só quebrar o seu, mealheiro de barro quando
tivesse já a farda, para ir tirar o retrato de grande uniforme.

Mas quando chegou o dia da partida e viu à porta o carro em que devia
seguir, os criados arrastando as malas, o pai gritando porque não
estavam as coisas em ordem - e o comboio não espera! - quando viu a mãe
soluçante por ver partir o mais novo, o mais fraquinho, o
preferido - todos o sabiam - o Luís perdeu a coragem. E chorou, chorou
intensamente, num soluçar fundo, próprio dessas naturezas impulsivas,
febris, doentias, a que os nervos emprestam uma acuidade dolorosa,
embora passageira, nas sensações.

E ella, a irmãzita, já com a orla do vestido a procurar o cano da bota,
a trança loira cahida pelas costas, o corpo airoso e fino ainda sem o
quebrado das linhas feminis, não tivera lágrimas que correspondem
àquela dor excessiva, nem palavras que consolasse aquela alma desolada.

Sorria até, para esconder uma ligeira tremura significativa no labiosito
ainda criança, mas o seu olhar era límpido, e a face, ligeiramente
enrubescida, em coisa alguma trata o esforço enorme de vontade que a sua
atitude representava. É que era realmente heroica aquela criança que
represava as lágrimas, bem naturais no entanto, para encobrir o seu
legítimo desgosto ao ver partir o irmão, o seu companheiro e amigo mais
certo.