Texto - "A Morgadinha dos Cannaviaes" Júlio Dinis

feche e comece a digitar
Ao cair de uma tarde de dezembro, de sincero e genuíno dezembro, chuvoso, frio, açoitado do sul e sem contrafeitos sorrisos de primavera, subiam dois viandantes a encosta de um monte por a estreita e sinuosa vereda, que pretensiosamente gozava das honras de estrada, á falta de competidora, em que melhor coubessem.

Era dos extremos do Minho e onde está risonha e felicíssima província começa já a ressentir -se, senão ainda nos valles e planuras, nos visos dos outeiros pelo menos, da vizinhança da sua irmã, a alpestre e severa Trás-os-Montes.

O sítio, daquele ponto, tinha o aspeto solitário, melancólico, e, nessa tarde, quase sinistro. D'alli a qualquer povoação importante, e com nome em carta chorographica, estendiam-se milhas de pouco transitáveis caminhos. Vestígios de existência humana raro se encontravam. Só de longe em longe, a choça do pegureiro ou a cabana do rachador, mas está tão ermas e desamparadas, que mais entristecem do que a absoluta solidão.

Não se moviam em perfeita igualdade de condições os dois viandantes, que dissemos.

Um, o mais moço e pela aparência o de mais grada posição social, era transportado num pouco escultural, mas possante mudar, de inquietas orelhas, músculos de mármore e articulações fiéis; o outro seguia a pé, ao lado dele, competindo, nas grandes passadas que devoravam o caminho, com a quadrupedante alimária, cujos brios, além disso, excitava por estímulos menos brandos do que os da simples e nobre emulação.

Contra o que seria plausível esperar deste desigual processo de transporte, dos dois o menos extenuado e impaciente com as larguras e fadigas da jornada não se pode dizer que fôsse o cavaleiro.

A postura de abatimento que lhe tomara o corpo, o olhar melancólico, fito nas orelhas do macho, a indiferença, a taciturnidade ou o manifesto mau humor, que nem as bellezas e acidentes da paisagem natural conseguiam já desvanecer, o obstinado silêncio que apenas de quando em quando interrompia com uma frase curta mas enérgica, com uma pergunta impaciente sobre o termo da jornada, contrastavam com a viveza de gestos e desempenado jogo de membros do pedestre, com a sua torrencial verbosidade, a que não opunha diques, e com as joviais cantigas e minuciosas informações a respeito de tudo, por meio das quaes se encarregava de entreter e ao mesmo tempo instruir o seu sorumbático companheiro.

Explica-se bem esta diferença, dizendo que o cavaleiro era um elegante rapaz de Lisboa, que fazia então a sua primeira jornada, e o outro um almocreve de profissão.

O leitor provavelmente há de ter jornadeando alguma vez; sabe portanto que o grato e quase voluptuoso alvoroço, com que se concebe e planisa qualquer projeto de viagem, assim como a suave recordação que d'ella guardamos depois, são coisas de incomparavelmente muito maiores delicias, do que as impressões experimentadas no próprio momento de nos vermos errantes em plena estrada ou pernoitando nas estalagens, e mormente nas clássicas estalagens das nossas províncias. As pequenas impertinências, em que se não pensa antes, que se esquecem depois, ou que a saudade consegue até dourar e poetizar a seu modo; esses microscópicos martyrios, que de longe não avultam, actuam-nos, na occasião, a ponto de nos habilitar para o gôsto do que é realmente belo. A dureza do colchão, em que se dorme, do albardão ou selim sobre que se monta, o tempero ou destempero do heteróclito cozinhado com que se enche o estômago, a lama que nos incrusta até os cabelos, o pó que se nos insinua até os pulmões, o frio que nos inteiriça os membros, o sol que nos congestiona o cérebro, tudo então nos desafina o espírito, que trazíamos na tensão necessária para vibrar perante as maravilhas da natureza ou da arte.

Só pelo preço de muitas jornadas se compra o hábito de ficar impassível no meio dos episódios destas pequenas odysséas, que atormentam e exaurem o ânimo dos Ulysses novatos; mas aí, quando se adquire esse hábito, também nos achamos já com a sensibilidade mais embotada para as comoções do belo.

Examina-se com mais minuciosidade, mas com menos entusiasmo; analisa -se mais e melhor; porém a própria análise é a prova de que se sente menos.
Onde domina o sentimento e a imaginação, mal têm cabida a paciência e phleúgma, necessarias aos processos analyticos. O homem positivo e frio recolhe de qualquer excursão á pátria com a carteira cheia de apontamentos; o entusiasta e poeta nem uma data regista. Viu menos, sentiu mais.