A tradição popular em Portugal, nos assuntos de história pátria, não se remonta além do período da dominação árabe nas Hespanhas.
Pouco ou nada sabe o povo de celtiberos, de romanos e de visigodos. É, porém, entre ele noção corrente que, em outros tempos, fôra este inglês habitado por mouros, e que só á força de cutiladas e de botes de lança os expulsaram os cristãos para as terras da Mourama. Os vultos heróicos de reis e cavaleiros nossos, que se assinalaram nas lutas dessa época, ainda não desapareceram das crônicas orais, onde vivem iluminados por a mesma poética luz das xácaras e dos romances nacionais; e hoje ainda, nas danças e jogos que se celebram nos lugares públicos das vilas e aldeias, por ocasião das principaes solemnidades do ano, apraz-se a memória do povo de recordar os feitos daqueles tempos históricos por meio de simulados combates de mouros e christãos.
Nos contos narrados em volta da lareira, onde nas longas noites de serão se reúne a família rústica, ou às rápidas horas de uma noite de estio, na soleira da porta, ao auditório atento que segue com os olhos a lua em silenciosa carreira por um céu sem estrelas, avulta uma creação extremamente sympathia, a das mouras encantadas, princesas famosíssimas que ficaram nesses remotos tempos na península, em paços invisíveis, à espera de quem lhes venha quebrar o cativeiro, soltando a palavra mágica.
Falla-se em diversos pontos das nossas províncias, com a seriedade que é própria a uma arreigada crença, de tesouros enterrados, que os mouros por ahi deixaram, na esperança de voltarem um dia a resgatar -os, e já não tem sido poucas as escavações empreendidas no ávido intuito de os descobrir.
Esta mesma noção histórica do povo é a que dá lugar a um outro frequente fato. Quando, no centro de qualquer aldeia, se eleva um palácio, um solar de família, distinto dos edifícios comuns por uma qualquer particularidade architectonica mais saliente, ouvireis no sítio designado por o nome de Casa Mourisca, e, se não se guarda a memória da sua fundação, a crônica lhe designará infalivelmente como data a lendária e misteriosa época dos mouros.
Era o que sucedia com o solar dos senhores Negrões de Villar de Corvos, que, em três léguas em redondo, eram por isso conhecidos pelo nome dos Fidalgos da Casa Mourisca.
Não se persuada o leitor de que possuía aquele solar feição pronunciadamente árabe, que justificasse a denominação popular, ou que mãos agaranas houvessem de feito cimentado os alicerces da casa nobre denominada assim. Às pequenas torres quadradas, que se erguiam, coroadas de ameias, nos quatro ângulos do edifício, ao desenho ogival das portas e janellas, às estreitas seteiras abertas nos muros, e finalmente a certo ar de castello feudal, que um dos antepassados d'esta fidalga família tentou dar aos passos de sua residência senhorial, deverá ella a qualificação de mourisca, que persiste, apesar dos protestos da arte. Nenhum estylo architectonico fôra na construcção escrupulosamente respeitado; o gosto e capricho do proprietário presidiram mais que tudo á traça e execução da obra; não há pois exigências artísticas que me imponham a obrigação de descrever -a miudamente.
Diga-se porém a verdade; fossem quaes fossem os defeitos de architectura, as incongruências e absurdos de aquela fábrica grandiosa, quem, ao dobrar a última curva da estrada irregular por onde se vinha á aldeia, via surgir de repente do seio de um arvoredo secular aquelle vulto escuro e sombrio, contrastando com os brancos e risonhos casaes disseminados por entre a verdura das colinas próximas, mal podia reter uma exclamação de surpresa e involuntariamente parava a contemplar -o.
Ou o sol no poente lhe tirasse a fachada de granito, ou as ameias, que o coroavam, se desenhassem como negra dentadura no céo azul, alumiado pela claridade matinal, era sempre melancólico e triste o aspecto daquela residência, sempre majestoso e severo.
Reparando mais attentamente, outros motivos concorrem ainda para fortalecer esta primeira impressão. O tempo não se limitava a colorir o velho solar com as tintas negras da sua palheta; derrocada -lhe aqui e além uma meia ou um balaústre do eirado, mutilar -lhe a cruz da capella, desconjuntaram -lhe a cantaria em extensos laços de muro, abrindo-lhe interstícios, d'onde irrompe uma inútil vegetação parasita: e esta permanência de estragos, traindo a incúria ou a insuficiência de meios do proprietário actual, iniciava no espírito do observador uma série de melancólicas reflexões.
Pouco ou nada sabe o povo de celtiberos, de romanos e de visigodos. É, porém, entre ele noção corrente que, em outros tempos, fôra este inglês habitado por mouros, e que só á força de cutiladas e de botes de lança os expulsaram os cristãos para as terras da Mourama. Os vultos heróicos de reis e cavaleiros nossos, que se assinalaram nas lutas dessa época, ainda não desapareceram das crônicas orais, onde vivem iluminados por a mesma poética luz das xácaras e dos romances nacionais; e hoje ainda, nas danças e jogos que se celebram nos lugares públicos das vilas e aldeias, por ocasião das principaes solemnidades do ano, apraz-se a memória do povo de recordar os feitos daqueles tempos históricos por meio de simulados combates de mouros e christãos.
Nos contos narrados em volta da lareira, onde nas longas noites de serão se reúne a família rústica, ou às rápidas horas de uma noite de estio, na soleira da porta, ao auditório atento que segue com os olhos a lua em silenciosa carreira por um céu sem estrelas, avulta uma creação extremamente sympathia, a das mouras encantadas, princesas famosíssimas que ficaram nesses remotos tempos na península, em paços invisíveis, à espera de quem lhes venha quebrar o cativeiro, soltando a palavra mágica.
Falla-se em diversos pontos das nossas províncias, com a seriedade que é própria a uma arreigada crença, de tesouros enterrados, que os mouros por ahi deixaram, na esperança de voltarem um dia a resgatar -os, e já não tem sido poucas as escavações empreendidas no ávido intuito de os descobrir.
Esta mesma noção histórica do povo é a que dá lugar a um outro frequente fato. Quando, no centro de qualquer aldeia, se eleva um palácio, um solar de família, distinto dos edifícios comuns por uma qualquer particularidade architectonica mais saliente, ouvireis no sítio designado por o nome de Casa Mourisca, e, se não se guarda a memória da sua fundação, a crônica lhe designará infalivelmente como data a lendária e misteriosa época dos mouros.
Era o que sucedia com o solar dos senhores Negrões de Villar de Corvos, que, em três léguas em redondo, eram por isso conhecidos pelo nome dos Fidalgos da Casa Mourisca.
Não se persuada o leitor de que possuía aquele solar feição pronunciadamente árabe, que justificasse a denominação popular, ou que mãos agaranas houvessem de feito cimentado os alicerces da casa nobre denominada assim. Às pequenas torres quadradas, que se erguiam, coroadas de ameias, nos quatro ângulos do edifício, ao desenho ogival das portas e janellas, às estreitas seteiras abertas nos muros, e finalmente a certo ar de castello feudal, que um dos antepassados d'esta fidalga família tentou dar aos passos de sua residência senhorial, deverá ella a qualificação de mourisca, que persiste, apesar dos protestos da arte. Nenhum estylo architectonico fôra na construcção escrupulosamente respeitado; o gosto e capricho do proprietário presidiram mais que tudo á traça e execução da obra; não há pois exigências artísticas que me imponham a obrigação de descrever -a miudamente.
Diga-se porém a verdade; fossem quaes fossem os defeitos de architectura, as incongruências e absurdos de aquela fábrica grandiosa, quem, ao dobrar a última curva da estrada irregular por onde se vinha á aldeia, via surgir de repente do seio de um arvoredo secular aquelle vulto escuro e sombrio, contrastando com os brancos e risonhos casaes disseminados por entre a verdura das colinas próximas, mal podia reter uma exclamação de surpresa e involuntariamente parava a contemplar -o.
Ou o sol no poente lhe tirasse a fachada de granito, ou as ameias, que o coroavam, se desenhassem como negra dentadura no céo azul, alumiado pela claridade matinal, era sempre melancólico e triste o aspecto daquela residência, sempre majestoso e severo.
Reparando mais attentamente, outros motivos concorrem ainda para fortalecer esta primeira impressão. O tempo não se limitava a colorir o velho solar com as tintas negras da sua palheta; derrocada -lhe aqui e além uma meia ou um balaústre do eirado, mutilar -lhe a cruz da capella, desconjuntaram -lhe a cantaria em extensos laços de muro, abrindo-lhe interstícios, d'onde irrompe uma inútil vegetação parasita: e esta permanência de estragos, traindo a incúria ou a insuficiência de meios do proprietário actual, iniciava no espírito do observador uma série de melancólicas reflexões.