Texto - "Uma família ingleza: Scenas da vida do Porto" Júlio Dinis

feche e comece a digitar
Havia menos estrelas no céu, do que máscaras nas ruas. Fevereiro, esse mês inconstante como uma mulher nervosa, estava nos seus momentos de mau humor; mas, embora; o folgazão entrudo ria-se de taes severidades e dançava ao som do vento e da chuva, e sob o docel de nuvens negras que se levantavam do sul. Graças à cheia do Douro, a cidade baixa podia bem prestar-se naquela época a uma paródia do carnaval veneziano.

Á porta dos teatros apinhava-se a multidão; os altos brados dos vendedores de senhas e os agudos falsetes dos mascarados atordoam os ouvidos. Dos cabides dos guarda-roupas, provisoriamente armados nas lojas circunvizinhas aos principais salões de baile, pendiam vestuários correspondentes a todas as épocas e a todas as nações, e alguns, aos quaes não era possível designar época, nação, classe ou condição social conhecida.

Numerosos grupos de espectadores paravam diante das exposições de máscaras á venda e tornavam o trânsito naquelas ruas quase impraticável. Era uma fascinação análoga à que produz um conto de Hoffmann em imaginações excitáveis, e exercida neles por tantas máscaras enfileiradas, cuja diversidade cômica de expressão e de gesto lembrava um enxame de cabeças mephistopheles, surgindo à luz para se rirem das loucuras da humanidade.

Estes absortos contempladores a cada passo vinham a si, desagradavelmente acordados pelas pragas enérgicas dos conductores de carruagens, prestes a atropelar-os, ou pela interjeição pouco harmoniosa dos cadeirinhas obrigados por causa d'elles a irregularidades no andamento da sua grave é benéfica tarefa. Só então, e ainda a custo, se dispersaram, para, alguns passos mais adiante, se aglomeraram de novo.

Se é lícito comparar as grandes às pequenas coisas, veremos nestes a imagem de todos os inofensivos cismadores deste mundo, a quem sempre cruelmente vem despertar o embate dos fatigados em empresas positivas.

A animação era geral na cidade.

Todos corriam com ancia... a enfastiar-se, fingindo que se divertiam.

Alguma cousa havia também na Águia d'Ouro, a anciã das nossas casas de pasto, a velha confidente de quase todos os segredos políticos, particulares e artísticos desta terra; alguma cousa havia nessa modesta casa amarela do largo da Batalha, que desviava para lá os olhares de quem passava.

Desde as tres horas da tarde que o tinir dos crystaes e das porcelanas, o estalar das garrafas desarrolladas, o estrépito das gargalhadas, das vozerias tumultuosas, e dos hurrahs ensurdecedores rompiam, como uma torrente, do acanhado portal daquele bem conhecido edifício; e por muito tempo essa torrente, á maneira do que succede com a das águas dos rios caudalosos ao desembocarem no mar, conservava-se distincta ainda, através do grande rumor, que enchia as ruas.

Os criados subiam e desciam azafamados as escadas, cruzavam-se ou abalroaram-se nos corredores, hesitavam perplexos entre ordens contradictorias, vinham apressar os colegas na cozinha ou entretinham com promessas os impacientes convivas da sala.

No entretanto o modesto e solitário freguês, a quem uma veleidade estomacal convidada a ir cear a humilde costeleta, principal trophée culinária da casa, era pouco atendido e, farto de esperar, retirava-se sorrateiro e cabisbaixo.

Sob aparências de modéstia, a Águia d'Ouro parecia d'esta vez aureolada de não sei que magestade, condigna do seu emblema.

A luz escassa de um lampião da rua, batendo sobre a ave de Júpiter, que coroa a tabuleta do estabelecimento, parecia dar-lhe reflexos, mais brilhantes do que os do costume.

Que era noite solemne para a casa, aquela casa que tem já dado que entender a ministérios e a empresários líricos, não podia haver dúvida.

Cá em baixo, os serventes do café falavam a meia voz e mostravam no olhar certo ar de preocupação, certa importância no gesto, como se efectivamente se estivesse passando coisa de momento no andar de cima.

O café contrastava porém com a animação que se percebia nas salas da hospedaria.

Estavam desertos os lugares daquele abafada quadra, em cujas paredes ainda então existiam, e ameaçavam perpetuar-se, reproduções, em lona, dos combates que restabeleceram a independência da Grécia; a luz amortecida dos candeeiros não dissipou as sombras dos recantos.

O marcador do bilhar cabecear com sono.

Os bailes de máscaras tinham derivado d'alli até os homens políticos. Naquela noite as discussões sobre a guerra da Crimeia, então na ordem do dia, travavam-se ao som das valsas e das mazurkas, nos teatros.

Não é pois neste lugar, agora melancólico e quase lúgubre, que eu pretendo demorar o leitor.

Subamos, e, por entre os criados que encontrarmos nas escadas e corredores, penetramos na sala d'onde provém o ruído de festa que já noticiamos.

O leitor por certo conhece o recinto. As suas particularidades arquitectónicas não requerem também as fadigas da descripção.

É um jantar de rapazes a festa, a que viemos assistir.

Chegamos, porém, tarde.

O fumo dos charutos enevoa a sala e empana o fulgor das luzes; o jantar vae no fim, a desordem portanto no ponto culminante.

Há já cálices partidos, vinhos preciosos extravasados, convivas em todas as posições, algumas indescritíveis.

A vozeria é atordoadora. A confusão pode dar uma ideia de Babel.

Tratam-se simultaneamente todos os assumptos; as transições fazem-se com uma rapidez, que surpreende e embaraça os próprios interlocutores; atenção, que se desvie um segundo, é atenção perdida; não encontra depois já o diálogo onde o deixou; às vezes a conversa generalizar -se; momentos depois, distribui -se em especialidades por diversos grupos; mais tarde, generalizou -se de novo; em certas ocasiões, todas as bôcas falam, cada um se escuta a si; noutras algum orador consegue por instantes fazer-se escutar de todos, até que um aparte, um incidente, um gesto, restabelece a independência primitiva. Dão-se também verdadeiros em cruzamentos de conversas; o dos pés da mesa responde ao dito que houve ao da cabeceira, enquanto que os intermediários se entretém de outros objectos; é um embaralhar de palavras, em que a custo se tira a limpo a expressão do pensamento.

Ali fala -se em literatura e ouve-se, de quando em quando, pronunciar o nome de algum romancista ou poeta de vulto ou da moda; perto, discute-se política e julgam-se num momento, e com a mais desencanada crítica, as primeiras capacidades financeiras, diplomáticas e militares da época; conversam mais longe de aventuras de amor dois rapazes fronteiros e, atravessando-se diagonalmente com tão agradável prática, o diálogo de outros dois exerce-se sobre modas de casacos; um grupo exalta-se, tratando assumptos de teatro lyrico e premeditando prateadas e ovações; juntos deste, dois entusiastas de hippie cultura fazem a história pitoresca de compras, vendas e manhas de cavalos. A própria filosofia alemã fornece alimento à animação dos discursos; e tudo isto interrompido de gargalhadas, de cantigas, de juras e exclamações em todas as línguas.

Seria igualmente difícil determinar o elemento comum dos indivíduos reunidos ali.

Há -os das mais diversas condições; desde o jovem padre, que põe a tractos a ciência e a paciência dos cabeleireiros para disfarçar, quanto for possível, os vestígios da tonsura, até o official do exército, todo possuído das branduras civilizadoras do século e para quem a mesma caça é ocupação bárbara e afflictive da sensibilidade; há -os das mais diversas idades, desde o colegial de ontem, ainda imberbe e embriagado com as primeiras emoções da vida de adolescente, até o velho, que, ingenuamente persuadido de que o tempo se esqueceu de lhe ir contando os anos, deixa passar a geração, contemporânea sua, e insiste em viver, entre rapazes, vida de rapaz; há -os em diversas circunstâncias monetárias, desde o capitalista, que vê correr descuidado a fonte dos seus rendimentos, com tranquilizadora confiança no inesgotável manancial que a alimenta até à classe dos encostados, verdadeiros martyres da moda, cuja vacuidade de bolsa lhes constrange a imaginação a fabricar sistemas quotidianos para os manter, embora a custa de humilhações naquela atmosfera, fora da qual já não sabem respirar; há -os de todos os graus de inteligência, desde o escritor aplaudido e que, sem favor ou com ele, conquistou reputação nas lettras, até o analphabeto, cujas sandices são soldadas com gargalhadas que ninguém procura reprimir na presença dele próprio.

Finalmente, esta reunião de elementos, debaixo de todos os pontos de vista tão heterogêneos, é uma porção da sociedade, que pretensiosamente se decora com o título de elegante e para pertencer á qual é difícil fazer resenha dos requisitos necessários; pois que nem a própria elegância -na verdadeira acepção do termo-é dote genérico dos seus membros.