Á meia noite, depois de ter abraçado os amigos no Martinho, com uma ternura de adeuses que o caráter blasé de quase todos tornará, valha a verdade, intempestiva, Jorge Miguel tomou vagarosamente o caminho habitual da sua casa, cismando em que era esse o seu último "fora de horas" de Lisboa. Morava ao Monte havia nove anos, no píncaro do outeiro mesmo, sobranceiro à cidade, ao pé da ermida-numa casinhola de pobres cujo primeiro andar o novo senhorio repartirá entre ele e um empregador velho do Museu.
Alli, com os seus livros, sem creado, varrendo a casa ele mesmo, com pares de calças por cima de todas as cadeiras e cartapacios em um tumulto de ramas pelo chão, Jorge Miguel fazia uma vida concentrada de alchimista, silenciosa, de porta fechada às visitas e cerebralidade muda ás expansões.
A cidade, que o conhecia num fumo de lenda um pouco feita através das suas blagues, afizera-se a lhe consentir em público um eu à parte, explicando por maluquice a concentração solitária dos seus giros, e mesmo por bebedeira as apoplexias de humor que a certas horas converteram a sua apathia triste em improvisação epiléptica, archi-estouvada.
Àquela hora a cidade apaziguava os seus tumultos, bahia do gás um langoroso bruxuleio; os transeuntes, menos; e todo aquele sossego entrava na solidão mental do pobre moço, excruciante-lhe a vida de um nunca mais a vida de solteiro. Porque Jorge Miguel, farto de viver sozinho, ia casar.
A história d'esse amor era uma destas cousas occasional, despertadas na vida entre duas cogitações mais amargas, arrastadas longos anos entre preguiças de affecto e de fallencias de vontade, relegadas successivamente para os longes do futuro, e que um dia afinal se impõem como a solução pelo absurdo de um problema econômico impossível de resolver de outra maneira. A vida litteraria, única paixão absorvente que se lhe tinha conhecido, chegada ao cume, colocará-o na alternativa de, ou ter de rebentar de martyrio em um meio hostil a toda a ideia de arte independente, ou de pôr ponto brusco numa produção que mesmo apesar de fulgurante e vigorosa só conseguia produzir no público uma surda irritação minaz contra o escritor. Entre a miséria odiada e a expectativa de uma madorna plethoric num canto de província, Jorge Miguel acaba alfim por se vencer; e d'esta vez, arrasado, dera no orgulho o golpe mestre, fazendo as malas para esse desterro onde a beatificação do matrimônio lhe açaimar os últimos piaf ões de archanjo revoltado.
Quando chegou a casa estavam quatro malas fechadas na antecâmara, um couvre-pieds acorrentado com guarda-chuvas e bengalas, dois móveis envoltos em lona que os gallegos não tinham podido levar na última padiola, para a gare-e os aposentos sem trastes, o relógio parado no muro, o vento ronronando nas árvores do adro, tudo aquilo lhe pareceu como o responso da sua mocidade já fria e decomposta. A um canto da pequenina sala de trabalho, um monte de papéis, tombo da sua bohemia, aguardava o auto-de-fé liquidador. Jorge Miguel despiu o casaco, trouxe um alguidar da cozinha, e chegando para o pé da papelada uma das malas, começou á luz da vela o inventário d'esse archivo de quinze anos rebolados por todas as maluquices da vida sensacional e litteraria. Eram primeiro bilhetes de visita e bilhetes postaes agradecendo livros, pedindo entrevistas, artigos, palavras de favor-menus de jantar, convites de exposições e de concertos, ramitos seccos, retratos insepultos, cartéis com monogramas, dizendo, em língua inverossímil, admirações literárias com ressaibos a estranhos sentimentos-e Jorge Miguel passeava os olhos devagar não aquelas coisas, evocava um momento as epochas e as respostas, e freneticamente, para asfixiar a saudade, chegava os papéis á vella, e ia-os atirando incendiados para a concavidade do alguidar. Cartas de Paris, cartas de Roma, da América, de Coimbra, todos os cantos do mundo e da província, homenagens fervorosas, anonymas de ódios truculentos, discipulados timidos, identificações a distancia n'um ideal sonhado, em pontos antipodais de educação e temperamento, consultas de misteriosas literárias, de celibatárias impacientes pedindo conselho para casos de psicologia individual cheios de acirramento... e desatavam-se os maços das fitas já ardidas da poeira das gavetas, as velhas folhas rolavam, talhes de lettra e prosa sucediam-se, e sempre a impassivel vella, com a alma da luz azul, muito direita, consumia implacavelmente essas quiméricas memórias onde tantos corações tinham batido dele ao mesmo tempo. Quando o pobre alguidar foi cheio de restos, e da mocidade de Jorge Miguel nada restava a mais do que algumas lágrimas a ferver-lhe na pele do rosto, uma vacuidade estranha entrou-lhe n'alma, sendo então que o relógio parado e o silêncio da casa parecem marcar um fim de mundo.
Abriu a janella um pouco sobre a noite, e com o alguidar ainda quente despejou á rua a sarabanda das cinzas agregadas ainda em folhas inteiriças, que o vento espiral ou no ar em borboletas tenebrosas; e as que tinham vindo de longe, tomaram por caminhos rápidos, ao largo; e algumas hesitavam, sem se lembrarem já da morada de seus donos; entraram-lhe pela janela outras, eram as orphãos, como a pedir ao escritor que as adotasse; e algumas finalmente, como suicidas inertes, baqueiam no chão pulverizadas, e o vento d'alba as varreu pouco a pouco aos quatro cantos do destino.
Alli, com os seus livros, sem creado, varrendo a casa ele mesmo, com pares de calças por cima de todas as cadeiras e cartapacios em um tumulto de ramas pelo chão, Jorge Miguel fazia uma vida concentrada de alchimista, silenciosa, de porta fechada às visitas e cerebralidade muda ás expansões.
A cidade, que o conhecia num fumo de lenda um pouco feita através das suas blagues, afizera-se a lhe consentir em público um eu à parte, explicando por maluquice a concentração solitária dos seus giros, e mesmo por bebedeira as apoplexias de humor que a certas horas converteram a sua apathia triste em improvisação epiléptica, archi-estouvada.
Àquela hora a cidade apaziguava os seus tumultos, bahia do gás um langoroso bruxuleio; os transeuntes, menos; e todo aquele sossego entrava na solidão mental do pobre moço, excruciante-lhe a vida de um nunca mais a vida de solteiro. Porque Jorge Miguel, farto de viver sozinho, ia casar.
A história d'esse amor era uma destas cousas occasional, despertadas na vida entre duas cogitações mais amargas, arrastadas longos anos entre preguiças de affecto e de fallencias de vontade, relegadas successivamente para os longes do futuro, e que um dia afinal se impõem como a solução pelo absurdo de um problema econômico impossível de resolver de outra maneira. A vida litteraria, única paixão absorvente que se lhe tinha conhecido, chegada ao cume, colocará-o na alternativa de, ou ter de rebentar de martyrio em um meio hostil a toda a ideia de arte independente, ou de pôr ponto brusco numa produção que mesmo apesar de fulgurante e vigorosa só conseguia produzir no público uma surda irritação minaz contra o escritor. Entre a miséria odiada e a expectativa de uma madorna plethoric num canto de província, Jorge Miguel acaba alfim por se vencer; e d'esta vez, arrasado, dera no orgulho o golpe mestre, fazendo as malas para esse desterro onde a beatificação do matrimônio lhe açaimar os últimos piaf ões de archanjo revoltado.
Quando chegou a casa estavam quatro malas fechadas na antecâmara, um couvre-pieds acorrentado com guarda-chuvas e bengalas, dois móveis envoltos em lona que os gallegos não tinham podido levar na última padiola, para a gare-e os aposentos sem trastes, o relógio parado no muro, o vento ronronando nas árvores do adro, tudo aquilo lhe pareceu como o responso da sua mocidade já fria e decomposta. A um canto da pequenina sala de trabalho, um monte de papéis, tombo da sua bohemia, aguardava o auto-de-fé liquidador. Jorge Miguel despiu o casaco, trouxe um alguidar da cozinha, e chegando para o pé da papelada uma das malas, começou á luz da vela o inventário d'esse archivo de quinze anos rebolados por todas as maluquices da vida sensacional e litteraria. Eram primeiro bilhetes de visita e bilhetes postaes agradecendo livros, pedindo entrevistas, artigos, palavras de favor-menus de jantar, convites de exposições e de concertos, ramitos seccos, retratos insepultos, cartéis com monogramas, dizendo, em língua inverossímil, admirações literárias com ressaibos a estranhos sentimentos-e Jorge Miguel passeava os olhos devagar não aquelas coisas, evocava um momento as epochas e as respostas, e freneticamente, para asfixiar a saudade, chegava os papéis á vella, e ia-os atirando incendiados para a concavidade do alguidar. Cartas de Paris, cartas de Roma, da América, de Coimbra, todos os cantos do mundo e da província, homenagens fervorosas, anonymas de ódios truculentos, discipulados timidos, identificações a distancia n'um ideal sonhado, em pontos antipodais de educação e temperamento, consultas de misteriosas literárias, de celibatárias impacientes pedindo conselho para casos de psicologia individual cheios de acirramento... e desatavam-se os maços das fitas já ardidas da poeira das gavetas, as velhas folhas rolavam, talhes de lettra e prosa sucediam-se, e sempre a impassivel vella, com a alma da luz azul, muito direita, consumia implacavelmente essas quiméricas memórias onde tantos corações tinham batido dele ao mesmo tempo. Quando o pobre alguidar foi cheio de restos, e da mocidade de Jorge Miguel nada restava a mais do que algumas lágrimas a ferver-lhe na pele do rosto, uma vacuidade estranha entrou-lhe n'alma, sendo então que o relógio parado e o silêncio da casa parecem marcar um fim de mundo.
Abriu a janella um pouco sobre a noite, e com o alguidar ainda quente despejou á rua a sarabanda das cinzas agregadas ainda em folhas inteiriças, que o vento espiral ou no ar em borboletas tenebrosas; e as que tinham vindo de longe, tomaram por caminhos rápidos, ao largo; e algumas hesitavam, sem se lembrarem já da morada de seus donos; entraram-lhe pela janela outras, eram as orphãos, como a pedir ao escritor que as adotasse; e algumas finalmente, como suicidas inertes, baqueiam no chão pulverizadas, e o vento d'alba as varreu pouco a pouco aos quatro cantos do destino.