Texto - "A Morte Vence" João José Grave

feche e comece a digitar
A criança dormia tranquilamente, deitada no seu pequenino berço vaporoso
de rendas e resplandecendo de brancura, por esse glorioso meio-dia de
calor e de luz, no grande e benéfico silêncio que envolvia a vivenda
feliz. A sua carne virginal e transparente, ainda mal formada, parecia
exalar claridade e tinha a coloração suave de certas rosas pálidas e
orvalhadas. A cabeleira anelada e loura espalhava-se, como uma ligeira
nuvem de ouro, na alvura da almofada, macia e fofa, que servia de
travesseiro; e sobre essa fronte angélica não profanada por impuros,
venenosos pensamentos, baixava um halo de inocência luminosa e de graça
imaterial.

Havia no quarto uma penumbra sedosa e frouxa que refrescam o ambiente
inefável e que tornava mais imprecisas, mais vagas, as linhas e as
formas do mobiliário. Na pacificação deleitosa tudo repousava docemente.
Em cima do mármore do toucador, em frente dum largo espelho em que se
refletiam imagens baças e indecisas, floriam perfumados ramos de cravos
brancos em jarras de cristal cheias de água límpida; e da parede alta
pendia, como a proteção celeste da infância adormecida, uma cópia a
óleo da Virgem, de Murillo, que, entre anjos alados, extasiava os puros
olhos nos fulgores siderais. Cá fora, o sol - um ardente sol de
junho-rutilavam e ardia na atmosfera pesada e abafada.

Brandamente, na ponta dos pés para não fazer barulho, Júlia entrou no
compartimento solitário, aproximou-se do casto leito do filho, que tinha
apenas meses de vida, contemplando-o com enlevo e ternura. Ela contava
então vinte e quatro anos, estava em pleno esplendor da sua beleza e do
seu encanto de mulher, a alegria reflectia-se-lhe no rosto e a ventura
iluminava-se-lhe na alma. Duma elegância natural e sóbria, vestia um
amplo roupão de cassa creme apertado na cinta por laços de veludo preto.
O curto decote deixava a descoberto a pele do colo que era cetinosa,
dourada e sem o mais ligeiro vinco. Um pente de tartaruga com embutidos
de ouro segurava a massa dos seus cabelos castanhos enrolados no alto da
nuca. Os seios direitos e rijos formavam uma delicada curva sob os
tecidos flexíveis, ao arfar. Dois anos antes, em Vizela, apaixona-se
seriamente por Nuno Aragão, para quem fôra levada por um forte impulso
de sentimento; e com êle casara ao fim dum romântico idílio em que os
seus sonhos de felicidade deram flor. Essa união íntima que a fizera
esposa e mãe e a que se devotou com um admirável espírito de abnegação,
completou-a. Os dias do seu noivado tão doce fugiram de leve sem que
dêles ficassem resíduos de tédio...

Absorvida na visão do frágil ser que lhe trouxera, com a sua pureza e a
sua formosura, uma revelação à inteligência e à subtileza emotiva, Júlia
ajoelhou junto do berço, compondo a roupa à volta da cabecinha ideal,
que a virgindade aureolava, com dedos mais ágeis do que asas-e nem
sequer notava a presença de Nuno que a seguira de perto e que, por
detrás dela, sorria comovido. Houve um momento em que Júlia se curvou
sôbre a face gorda e picada de còvinhas do filho, roçando-a com os
lábios.