Nunca imaginei que tão prodigiosa ocorrência se pudesse dar na minha
vida--vida que me parece bem cheia, e vida que me parece bem longa...
Sem dúvida, por a ter começado tão cedo! Com efeito, na idade em que os
outros rapazes ainda soletram nos bancos da escola, já eu andava
agenciando o meu pão por esta velha colônia do Cabo. E por aqui fiquei
desde então, metido em negócios, em serviços, em travessias, em
guerras, em trabalhos--e nessa dura profissão, que é a minha, a caça ao
elefante e ao marfim. Pois, com toda esta diligência, só ultimamente,
há oito meses, arredondei o meu saco. É um bom saco. É um saco
graúdo, louvado Deus. Creio mesmo que é um tremendo saco! E apesar
disso, juro, que para o sentir assim, redondo e soante entre as mãos,
não me arriscava a passar outra vez os transes deste terrível ano que
lá vai. Não! Nem tendo a certeza de chegar ao fim com a pele intacta e
com o saco cheio. Mas eu no fundo sou um tímido, detesto violências, e
ando farto, farto de aventuras!
Como dizia pois, é coisa estranhíssima que assim me lance a escrever um
livro. Não está nada no meu feitio ser homem de prosa e de letras--ainda
que, como outro qualquer, apreciar as belezas da Santa Bíblia e gozo com
a História do Rei Arthur e da sua Távola Redonda. No entanto tenho
razões, e razões consideráveis, para tomar a pena com esta mão inábil
que há quase cinquenta anos maneja a carabina. Em primeiro lugar, os
meus companheiros, o barão Curtis e o digno capitão da Armada Real John
Good (a quem chamo por hábito "o capitão John") pediram-me para relatar
e publicar a nossa jornada ao Reino dos Kakuanas. Em segundo lugar,
estou aqui em Durban, estirado numa cadeira, inutilizado para umas
semanas, com os meus achaques na perna. (Desde que aquele infernal leão
me traçou a coxa de lado a lado, fiquei sujeito a estas crises, todos os
anos, ordinariamente pelos fins do outono. Foi em fins de outono que
apanhei a trincadela. É duro que depois de um homem matar, no decurso
da sua honrada carreira, quarenta e cinco leões, seja justamente o
último, o quadragésimo sexto que o filé e use dele como de tabaco que
se masca. É duro! Quebra a rotina, a estimável rotina--e para mim,
pessoa de ordem, qualquer surpresa me sabe pior do que fel). Em terceiro
lugar, além de encher os meus ossos, componho esta história para meu
filho Henrique, que está em Londres, interno no hospital de S.
Bartholomeu, estudando Medicina. É uma maneira de lhe mandar uma
longuíssima carta que o entretenha e que o prenda. Serviço de doentes,
numa enfermaria abafada e lôbrega, deve pesar intoleravelmente. Mesmo o
retalhar cadáveres termina por ser uma rotina, rica em monotonia e
tédio:--e assim esta história, onde tudo há menos tédio, vai por uns
dias levar ao meu rapaz uma saudável e alegre sensação de aventuras, de
viagens, de força e de vida livre. E enfim, como última razão, escrevo
esta crônica, por ser, sem dúvida, a mais extraordinária que
conheço--na Realidade ou na Fábula. Digo "extraordinária" mesmo para os
Leitores profissionais de Romances--apesar de nela não haver mulheres,
além da pobre Fulata. Há Gárgula, sim. Mas esse monstro tinha cem anos,
pouca forma humana, e não sensibiliza. Em todas estas duzentas páginas,
realmente, não passa uma saia. E todavia, assim escasso como é nas
graças do Feminino, não creio que exista um caso mais raro e mais
cativante.
vida--vida que me parece bem cheia, e vida que me parece bem longa...
Sem dúvida, por a ter começado tão cedo! Com efeito, na idade em que os
outros rapazes ainda soletram nos bancos da escola, já eu andava
agenciando o meu pão por esta velha colônia do Cabo. E por aqui fiquei
desde então, metido em negócios, em serviços, em travessias, em
guerras, em trabalhos--e nessa dura profissão, que é a minha, a caça ao
elefante e ao marfim. Pois, com toda esta diligência, só ultimamente,
há oito meses, arredondei o meu saco. É um bom saco. É um saco
graúdo, louvado Deus. Creio mesmo que é um tremendo saco! E apesar
disso, juro, que para o sentir assim, redondo e soante entre as mãos,
não me arriscava a passar outra vez os transes deste terrível ano que
lá vai. Não! Nem tendo a certeza de chegar ao fim com a pele intacta e
com o saco cheio. Mas eu no fundo sou um tímido, detesto violências, e
ando farto, farto de aventuras!
Como dizia pois, é coisa estranhíssima que assim me lance a escrever um
livro. Não está nada no meu feitio ser homem de prosa e de letras--ainda
que, como outro qualquer, apreciar as belezas da Santa Bíblia e gozo com
a História do Rei Arthur e da sua Távola Redonda. No entanto tenho
razões, e razões consideráveis, para tomar a pena com esta mão inábil
que há quase cinquenta anos maneja a carabina. Em primeiro lugar, os
meus companheiros, o barão Curtis e o digno capitão da Armada Real John
Good (a quem chamo por hábito "o capitão John") pediram-me para relatar
e publicar a nossa jornada ao Reino dos Kakuanas. Em segundo lugar,
estou aqui em Durban, estirado numa cadeira, inutilizado para umas
semanas, com os meus achaques na perna. (Desde que aquele infernal leão
me traçou a coxa de lado a lado, fiquei sujeito a estas crises, todos os
anos, ordinariamente pelos fins do outono. Foi em fins de outono que
apanhei a trincadela. É duro que depois de um homem matar, no decurso
da sua honrada carreira, quarenta e cinco leões, seja justamente o
último, o quadragésimo sexto que o filé e use dele como de tabaco que
se masca. É duro! Quebra a rotina, a estimável rotina--e para mim,
pessoa de ordem, qualquer surpresa me sabe pior do que fel). Em terceiro
lugar, além de encher os meus ossos, componho esta história para meu
filho Henrique, que está em Londres, interno no hospital de S.
Bartholomeu, estudando Medicina. É uma maneira de lhe mandar uma
longuíssima carta que o entretenha e que o prenda. Serviço de doentes,
numa enfermaria abafada e lôbrega, deve pesar intoleravelmente. Mesmo o
retalhar cadáveres termina por ser uma rotina, rica em monotonia e
tédio:--e assim esta história, onde tudo há menos tédio, vai por uns
dias levar ao meu rapaz uma saudável e alegre sensação de aventuras, de
viagens, de força e de vida livre. E enfim, como última razão, escrevo
esta crônica, por ser, sem dúvida, a mais extraordinária que
conheço--na Realidade ou na Fábula. Digo "extraordinária" mesmo para os
Leitores profissionais de Romances--apesar de nela não haver mulheres,
além da pobre Fulata. Há Gárgula, sim. Mas esse monstro tinha cem anos,
pouca forma humana, e não sensibiliza. Em todas estas duzentas páginas,
realmente, não passa uma saia. E todavia, assim escasso como é nas
graças do Feminino, não creio que exista um caso mais raro e mais
cativante.