Depois da alvorada, voga a canoa, por entre a frescura das margens, sobre o rio que se alarga; alto dia, vai correndo pelo amplo intervalo que separa as ramarias. Ao longe, algumas ilhotas formam escalão e a imagem das árvores marginais, a sua cor escura, a vida que nelas palpita, têm uma beleza vertiginosa.
Em torno, a floresta é como um antro escuro de mil aberturas hiantes, toda povoada pelos rumores da vida, abrigo formidável da eterna luta, asilo de raças contrárias, propicia às ciladas do ataque e aos redutos da defesa, grande dispensário de mantimentos, comum ao animal frugívoro e ao carnívoro, ao réptil e à ave.
Vamiré empunha o arpão, no intuito de ferir algum peixe. Está tranquilo. Depois das corridas dos últimos dias, a necessidade de descanso prende-o a quaisquer entretenimentos: a Reparação das armas ou do vestuário; a espera de caça apetitosa.
Nesta manhã, entretém-se com a pesca. Já duas vezes errou a vítima, porque o animal das águas foge mais rapidamente na esteira do seu hélice, do que a mão do homem se move.
Abaixa-se o arpão pela terceira vez, e Vamiré, segurando a haste, cravada a ponta aguda no flanco de um pequeno esturjão. O peixe ondula e ressalta; as empolgueiras opõem-se à saída da arma; mas, com os saltos eléctricos da presa, os liames estão em risco de se partir, e é mister que Vamiré manobrar habilmente, para evitar os repelões muito fortes ou muito perpendiculares.
Vai pagando com a mão esquerda e impelindo a presa adiante de si, até à borda do rio; chegado ali, crava ainda mais o arpão, levanta enfim o esturjão ensanguentado e atira-o para a margem.
Vai preparar a refeição. Os ramos secos, as hastes herbáceas, devoradas pelo fogo, produzem um acervo de cinzas pardas, onde se embebem pedaços da presa, e de onde se retiram, transmutados em carne tenra e saborosa, que Vamiré e Élem comem com apetite.
Um pouco entorpecidos pela boa refeição, estiram vagamente os olhos pela diversidade das coisas; acham-se a bastante distância da margem, numa clareira, ladeada de faias gigantes. Abundam as sarças, que vão recomendo os rasgões, ali abertos por alguma catástrofe antiga, e refazendo a integridade da floresta. Desabrocham robustas compósitas com uma flor amarga; e crescem cardos colossais, hirsutos, farpados, soberbos e terríveis.
Élem e Vamiré devaneiam suavemente em completa tranquilidade; mas eis que uma flecha passa a dois palmos do Pan. Este levanta-se, e empunha as armas. O seu olhar adestrado descobre perfis humanos atrás dos troncos das faias.
Aqueles perfis emergem a súbitas, e uma nuvem de flechas dilata-se no espaço.
Naquela hora de perigo, o instinto encosta Elem ao peito de Vamiré, ao passo que a luta se anuncia, ao passo que os inimigos, em número de sete, se aproximam céleres. São atarracados, são os homens do Oriente, de olhos de Érebo. Conhecem a agilidade de Vamiré e, formando leque, caem sobre ele, por forma que lhes não possa escapar. Já os arcos estão tendidos, as flechas envenenadas vão descrever as suas terríveis parábolas, mas erguem-se vozes, indicando o perigo de Helen, e todas as mãos substituem a frecha pela lança.
Vamiré encara-os altivamente, e o seu grito de guerra perturba o coração dos mais valentes. Reconhece nos seus inimigos a raça de Élem, crânio largo, pele trigueira, olhos escuros. Trazem tatuados os braços e a testa, e comanda-os um velho robusto.
Vamiré empunhará a zagaia... os homens trigueiros resguardam-se com os troncos mais próximos... Então Vamiré sobraça Élem, e vai recuando para o rio, onde espera poder embarcar... A uma ordem do chefe, chovem as frechas, que o Pan desvia lentamente, acelerando a retirada.
Táctica hábil, com que os orientais se irritam, e adiantam-se três deles. Mas a zagaia de Vamiré atravessa o mais ágil, e o Pan solta o riso triunfal da sua raça, entendendo que os dois sobreviventes não terão a coragem de lutar contra ele... A sua clava gira no espaço, a provocá-los; do seu peito hercúleo saem rugidos ferozes; o seu braço dispõe-se ao extermínio... O chefe antevê a perda dos seus, ordena-lhes que parem, e eles obedecem.
Um momento de tréguas. Os asiáticos goleiam por entre os espinhais, procurando cortar a retirada de Vamiré. No cinzento das faias que formavam polistilos obscuros, na eterna penumbra sotoposta às frágeis padieiras de ramaria, Vamiré entrevê-os, com um olhar de melancolia belicosa, e entretanto o sol ilumina a grande arena, o cerrado espinhoso, de onde os orientais espiam o inimigo. Na cabeça longa do Pan, através da febre da luta, a impressão de um recontro impertinente, o receio de perder Élem, e de se ver, por muito tempo, rodeado apenas do mutismo petrificante das coisas.
Em torno, a floresta é como um antro escuro de mil aberturas hiantes, toda povoada pelos rumores da vida, abrigo formidável da eterna luta, asilo de raças contrárias, propicia às ciladas do ataque e aos redutos da defesa, grande dispensário de mantimentos, comum ao animal frugívoro e ao carnívoro, ao réptil e à ave.
Vamiré empunha o arpão, no intuito de ferir algum peixe. Está tranquilo. Depois das corridas dos últimos dias, a necessidade de descanso prende-o a quaisquer entretenimentos: a Reparação das armas ou do vestuário; a espera de caça apetitosa.
Nesta manhã, entretém-se com a pesca. Já duas vezes errou a vítima, porque o animal das águas foge mais rapidamente na esteira do seu hélice, do que a mão do homem se move.
Abaixa-se o arpão pela terceira vez, e Vamiré, segurando a haste, cravada a ponta aguda no flanco de um pequeno esturjão. O peixe ondula e ressalta; as empolgueiras opõem-se à saída da arma; mas, com os saltos eléctricos da presa, os liames estão em risco de se partir, e é mister que Vamiré manobrar habilmente, para evitar os repelões muito fortes ou muito perpendiculares.
Vai pagando com a mão esquerda e impelindo a presa adiante de si, até à borda do rio; chegado ali, crava ainda mais o arpão, levanta enfim o esturjão ensanguentado e atira-o para a margem.
Vai preparar a refeição. Os ramos secos, as hastes herbáceas, devoradas pelo fogo, produzem um acervo de cinzas pardas, onde se embebem pedaços da presa, e de onde se retiram, transmutados em carne tenra e saborosa, que Vamiré e Élem comem com apetite.
Um pouco entorpecidos pela boa refeição, estiram vagamente os olhos pela diversidade das coisas; acham-se a bastante distância da margem, numa clareira, ladeada de faias gigantes. Abundam as sarças, que vão recomendo os rasgões, ali abertos por alguma catástrofe antiga, e refazendo a integridade da floresta. Desabrocham robustas compósitas com uma flor amarga; e crescem cardos colossais, hirsutos, farpados, soberbos e terríveis.
Élem e Vamiré devaneiam suavemente em completa tranquilidade; mas eis que uma flecha passa a dois palmos do Pan. Este levanta-se, e empunha as armas. O seu olhar adestrado descobre perfis humanos atrás dos troncos das faias.
Aqueles perfis emergem a súbitas, e uma nuvem de flechas dilata-se no espaço.
Naquela hora de perigo, o instinto encosta Elem ao peito de Vamiré, ao passo que a luta se anuncia, ao passo que os inimigos, em número de sete, se aproximam céleres. São atarracados, são os homens do Oriente, de olhos de Érebo. Conhecem a agilidade de Vamiré e, formando leque, caem sobre ele, por forma que lhes não possa escapar. Já os arcos estão tendidos, as flechas envenenadas vão descrever as suas terríveis parábolas, mas erguem-se vozes, indicando o perigo de Helen, e todas as mãos substituem a frecha pela lança.
Vamiré encara-os altivamente, e o seu grito de guerra perturba o coração dos mais valentes. Reconhece nos seus inimigos a raça de Élem, crânio largo, pele trigueira, olhos escuros. Trazem tatuados os braços e a testa, e comanda-os um velho robusto.
Vamiré empunhará a zagaia... os homens trigueiros resguardam-se com os troncos mais próximos... Então Vamiré sobraça Élem, e vai recuando para o rio, onde espera poder embarcar... A uma ordem do chefe, chovem as frechas, que o Pan desvia lentamente, acelerando a retirada.
Táctica hábil, com que os orientais se irritam, e adiantam-se três deles. Mas a zagaia de Vamiré atravessa o mais ágil, e o Pan solta o riso triunfal da sua raça, entendendo que os dois sobreviventes não terão a coragem de lutar contra ele... A sua clava gira no espaço, a provocá-los; do seu peito hercúleo saem rugidos ferozes; o seu braço dispõe-se ao extermínio... O chefe antevê a perda dos seus, ordena-lhes que parem, e eles obedecem.
Um momento de tréguas. Os asiáticos goleiam por entre os espinhais, procurando cortar a retirada de Vamiré. No cinzento das faias que formavam polistilos obscuros, na eterna penumbra sotoposta às frágeis padieiras de ramaria, Vamiré entrevê-os, com um olhar de melancolia belicosa, e entretanto o sol ilumina a grande arena, o cerrado espinhoso, de onde os orientais espiam o inimigo. Na cabeça longa do Pan, através da febre da luta, a impressão de um recontro impertinente, o receio de perder Élem, e de se ver, por muito tempo, rodeado apenas do mutismo petrificante das coisas.