Texto - "A velhice do padre eterno" Guerra Junqueiro

feche e comece a digitar
Ó almas que viveis puras, imaculadas
Na torre do luar da graça e da ilusão,
Vós que ainda conservam, intactas, perfumadas,
As rosas para nós há tanto desfolhadas
Na aridez sepulchral do nosso coração;
Almas, filhas da luz das manhãs harmoniosas,
Da luz que acorda o berço e que entreabre as rosas,
Da luz, olhar de Deus, da luz, benção de amor,
Que faz rir um nectário ao pé de cada abelha,
E faz cantar um ninho ao pé de cada flor;
Almas, onde resplende, almas, onde se espelha
A candura innocente e a bondade christã,
Como num céu de Abril o arco da aliança,
Como num lago azul a estrela da manhã;
Almas, urnas de fé, de caridade, e esp'rança,
Vasos d'oiro contendo aberto um lírio santo,
Um lírio imorredouro, um lírio alabastrino,
Que os anjos do Senhor vem orvalhar com pranto,
E a piedade florir com seu clarão divino;
Almas que atravessam o lodo da existência,
Este lado perverso, iníquo, envenenado,
Levando sobre a fronte o esplendor da innocencia,
Calcando sob os pés o dragão do pecado;
Bemditas sejais, vós, almas que esta alma adora,
Almas cheias de paz, humildade e alegria,
Para quem a consciência é o sol de toda a hora,
Para quem a virtude é o pão de cada dia!
Sois como a luz que doira as trevas de um monturo,
Ficando sempre branca a sorrir e a cantar;
E tudo quanto em mim há de belo ou de puro.
- Desde a esmola que eu dou à prece que eu murmuro -
É vosso: fostes vós o meu primeiro altar.
Lá da minha distante e encantadora infância,
D'esse ninho de amor e saudade sem fim,
Chega-me ainda a vossa angélica fragrância
Como uma harpa eólia a cantar a distância,
Como um véu branco ao longe inda a acenar por mim!

Minha mãe, minha mãe! ai que saudade imensa,
Do tempo em que ajoelhava, orando, ao pé de ti.
Caía mansa a noite; e andorinhas aos pares
Cruzavam-se voando em torno dos seus lares,
Suspensos do beiral da casa onde eu nasci.
Era a hora em que já sobre o feno das eiras
Dormia quieto e manso o impávido lebréu.
Vinham-nos das montanhas as canções das ceifeiras,
Como a alma de um justo, ia em triumpho ao céo!...
E, mãos postas, ao pé do altar do teu regaço,
Vendo a lua subir, muda, alumiando o espaço,
Eu balbuciava a minha infantis oração,
Pedindo a Deus que está no azul do firmamento
Que mandasse um alívio a cada sofrimento,
Que mandasse uma estrela a cada escuridão.
Por todos eu orava e por todos pedia.
Pelos mortos no horror da terra negra e fria,
Por todas as paixões e por todas as mágoas...
Pelos míseros que entre os uivos das procellas
Vão em noite sem lua e num barco sem velas
Errantes através do turbilhão das águas.
O meu coração puro, imaculado e santo
Ia ao throno de Deus pedir, como inda vai,
Para toda a nudez um panno do seu manto,
Para toda a miséria o orvalho do seu pranto
E para todo o crime o seu perdão de Pae!...

A minha mãe faltou-me era eu pequenino,
Mas da sua piedade o fulgor diamantino
Ficou sempre abençoando a minha vida inteira
Como junto de um leão um sorriso divino,
Como sobre uma forca um ramo de oliveira!

Ó crentes, como vós, no íntimo do peito
Abrigo a mesma crença e guardo o mesmo ideal.
O horizonte é infinito e o olhar humano é estreito:
Creio que Deus é eterno e que a alma é imortal.

Toda a alma é clarão e todo o corpo é lama.
Quando a lama apodrece inda o clarão scintilla:
Tirar o corpo - e fica uma língua de chama...
Tirar a alma - e resta um fragmento de argila.

E para onde vai esse clarão? Mysterio...
Não sei... Mas sei que sempre há-de arder e brilhar,
Quer tivesse incendiado o crânio de Tibério,
Quer tivesse aureolado a fronte de Joanna D'arc.

Sim, creio que depois do derradeiro sono
Há-de haver uma treva e há-de haver uma luz
Para o vício que morre ovante sobre um throno,
Para o santo que expira inerme numa cruz.

Tenho uma crença firme, uma crença robusta
N'um Deus que ha-de guardar por sua propria mão
Numa jaula de ferro a alma de Locusta,
N'um relicario d'oiro a alma de Platão.

Mas também acredito, embora isso vos pese,
E me julgueis talvez o maior dos ateus,
Que no universo inteiro há uma só diocese
E uma só cathedral com um só bispo - Deus.

E muito embora a vossa igreja se contriste
E a excomunhão papal nos abrace e destrua,
A analyse é feroz como uma lança em riste
E a verdade cruel como uma espada nua.

Cultos, religiões, bíblias, dogmas, assombros,
São como a cinza vã que sepultou Pompéia.
Exhumer a fé d'esse montão de escombros,
Desentulhe Mos Deus dessa aluvião de areia.

E um dia a humanidade inteira, oceano em calma,
Há-de fazer, na mesma aspiração reunida,
Da razão e da fé os dois olhos da alma,
Da verdade e da crença os dois pólos da vida.

A crença é como o luar que nas trevas fluctua;
A razão é do céo o esplêndido pharol:
Para a noite da morte é que Deus nos deu lua...
Para o dia da vida é que Deus fez o sol.

Mas, aí eu compreendo os martyrios secretos
Do pobre camponês, já quase secular,
Que vê tombar por terra o seu ninho de affectos,
A casa onde nasceu seu pae, e onde os seus netos
Lhe fecharam, morto, o escurecido olhar.
Comprehende o pavor e a lividez tremente
De quem em noite má, caliginosa e fria
Atravessa a montanha à luz de um facho ardente
E uma rajada vem alucinadamente
Apagar-lh'o c'o'a aza athletica e sombria,
Deixando-o fulminado e quase sem sentidos
A ouvir o ulular das feras e os bramidos
Do ciclone que explique rouco do sorvedoiro
E se enrosca furioso aos plátanos partidos
A estrangular-os, como uma jiboia um toiro.

Comprehende a agonia, o desespero insano
Do náufrago na rocha, entre o abismo do oceano,
Vendo rolar, rugir os glaucos vagalhões
Como uma cordilheira hercúlea de montanhas,
Com jaulas colossais de bronze nas entranhas,
E um domador lá dentro a chicotear trovões.

O vosso facho, o vosso abrigo, o vosso porto,
É um Deus que para nós há muito que está morto,
E que ainda imaginamos no entretanto immortal.
Vivei e adormeceu nessa crença ilusória,
Já não podeis transpor os mil anos da história
Que vão do vosso credo absurdo ao nosso ideal.
Vivei e adormeceu nessa ilusão sagrada,
Fitando até morrer os olhos de Jesus,
Como o ephemero vão que dura um quasi nada,
Que nasce de manhã num raio d'alvorada,
E expira ao pôr do sol n'outro raio de luz.
Eu bem sei que essa crença ignorante e sincera,
Não é a que ilumina as bandas do Porvir.
Mas vós sois o Passado, e a crença é como a hera
Que sustenta e dá ainda um tom de primavera
Aos velhos torreões góticos a cahir.
Sim, essa crença é um erro, uma ilusão, é certo;
Mas triste de quem vae pelo areal deserto
Vagabundo, esfaimado e nú como Caim,
Sem nunca ver ao longe os palácios radiantes
De uma cidade d'oiro e mármore e diamantes
No chimerico azul dessa amplidão sem fim!
Quem há-de arrancar pois do seu piedoso engaste
O vosso ingênuo ideal, ó trêmulos velhinhos,
Se a quimera é uma rosa e a existência uma haste,
Rosa cheia de aroma e haste cheia de espinhos!
Quem vos há-de cortar a flor da vossa esp'rança,
Quem vos há-de apagar a angélica visão,
Se essa luz para vós é como uma creança
Que guia numa estrada um cego pela mão!
Quem vos há-de acordar desse sonho encantado?!
Quem vos há-de mostrar a evidência cruel?!
Ah! deixemos a ave ao ramo já quebrado,
E deixemos fazer ao enxame doirado
No tronco que está morto o seu favo de mel!
Ó velhos aldeões, exaustos de fadiga,
Que andares de sol a sol na terra a mourejar,
Roubar-vos da vossa alma a vossa crença antiga
Seria como quem roubasse a uma mendiga
As três achas que leva á noite para o lar!
Oh, não! guarde-a bem essa crença d'outrora;
É ela quem vos dá a paz benigna e santa,
Como a paz de um vergel inundado d'aurora,
Onde o trabalho ri e onde a miséria canta.
Guardar-a sim, guardar! E quando a morte em breve
Vos entre na choupana esquálida e feroz,
A agonia será bem rápida e bem leve,
Porque um anjo de Deus mais alvo do que a neve
Há-de estender sorrindo as azas sobre vós.
E vós conhecereis em seu olhar materno
Que é o anjo que embalou vosso sono infantil,
E que hoje vem do céu mandado pelo Eterno,
Para sorrir na morte ao vosso branco inverno,
Como sorriu no berço ao vosso claro Abril.

E ao pender-vos gelada a vossa fronte alabastrina
Irá levar a Deus o vosso coração,
Tão manso e virginal, tão novo e tão perfeito,
Que Deus há-de beijar-o e aquece-o no peito,
Como se acaso fosse uma pomba divina,
Que viesse cahir-lhe exânime na mão!