Texto - "O Livro de Elysa" João de Lemos

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Já viste duas pombas a devorar o espaço com as brancas asas de seda, correndo, voando, internando-se por esse azul da cúpula imensa, ou pousando á beira de um lago de saphiras, ditosas na sua loucura, loucas na sua innocencia, innocentes nos seus carinhos? é o amor da pomba; é o meu amor.

Já viste ao pé dos córregos do inverno duas plantas indolentemente enroscadas, teimosas, viçosas, puríssimas, cheias de gozo sem futuro, cheias de futuro no gozo? é o amor da planta; é o meu amor.

Já viste como a rosa, voluptuosamente desabrochada no tugúrio verde da sua roseira, é, ao despontar da aurora, tão festejada, tão conversada, tão abraçada, tão beijada e tão adorada pela briza? é o amor da briza; é o meu amor.

Já viste uma criancinha, que se anda embriagando de folguedos no amanhecer da existência, e que logo os foge, que os engeita desdenhosa, porque a mãe lhe choveu entre eles, e que desfeita em sympathia risonha, em meiguice, em requebros lhe entreabre os braços e lhe pula ao collo? é o amor da criancinha; é o meu amor.

Já viste essa mãe carinhosa errar anhelante, desalinhada, com os pés e os braços nus, o cabelo desatado, os olhos em lágrimas, o peito a ondular-lhe, os lábios roxos e convulsos, a voz embaçada de suspiros, toda ella uma louca, ou antes um mysterio, toda ella resumida num sentimento indizível, sublime, divino, a calçar abrolhos, a transpor abismos, a galgar temos, a olhar, a escutar, a inquirir homens e pedras, a consultar pegadas, a ferir o rosto com uma das mãos, a esmagar os seios com a outra, e tudo em busca do filhinho, que se lhe perdera? é o amor da mãe carinhosa; é o meu amor.

Já viste o proscripto da pátria, assentado tristemente nos píncaros de serra estrangeira, comparando cada pedaço de terra, cada árvore, cada penedo, cada pássaro que lhe descanta, cada choupana, cada homem, cada povo, e os ares, e o horizonte, e as nuvens, e as estrellas, e o sol, e o céu; bradar depois pela pátria, só pela pátria? é o amor do proscripto; é o meu amor.

Já viste o marinheiro, nascido e criado nas aguas, identificar-se com ellas, namorar-se do seu navio, brincal-o, enfeital-o, acariciar-o sempre, beijar-lhe os cabos e velame, os mastros e o leme, contente vagar pelo estendal das vagas, sorrir ás procellas, sorrir ás bonanças, anhelar do longe uma ilha toda verde, que lhe está acenando na alma, um porto fagueiro, que lhe está alvejando no pensamento, uma estrela da noite, que lhe está radiando no coração; e atirar-se assim de encantado por esse mundo sem raias, a espreguiçar-se nas sensações, a sorver delírios e melancolias suavissimus, ainda que rudes e profundas; ora cavando o pélago com olhos severos, ora analisando o côncavo de um tecto infinito com olhos meditadores; e naquela solidão de que é monarca, com as suas endeixas e com o seu alaúde, apinhoado lá dentro de alma cada vez mais desprezos da terra, mais orgulho e fanatismo pelas suas campinas de cristal? é o amor do marinheiro; é o meu amor.

Já viste o captivo encostado ao marco de pedra, quasi tão quedo como ele, com a fronte enrugada e em cada ruga um concentramento de paixão, com a vista cravada no ferro, que lhe aperta e enodoa a perna, uma vista tão cravada, tão pegada, que a disseste um martello alli fundido por não poder despedaçar aquele anel; e uma lágrima a resaltar-lhe das faces ao ferro, como se fôra o líquido que havia de dissolver-o, e a mão estendida e tesa, e depois um sorriso, um sorriso para a liberdade, para aquelle coração outra vez a bater sem abafamentos, para aqueles olhos outra vez erguidos, para aqueles braços outra vez seus, para aqueles pés outra vez libertos, para aquelle ar que respirava, para aquela casa, aqueles amigos, aquela vida, aquele mundo, que lá lhe ficou? é o amor do captivo; é o meu amor.

E já viste, finalmente, o condenado a quem o vento do sepulchro sacode sobre a escada do cadafalso, que pende para a morte como a haste que se murcha, e que d'alli, de sobre esse triângulo erguido para vergonha da humanidade, escárnio de Deos, e epigramma da civilização, d'alli arremessa uma vista infinita, insondável, incompreensível para a turba, que brutalmente o festejam, mas para a turba, que ele nunca mais há de ver: para o mar, que lhe rebame ao pé como se cantará uma nênia execrável, mas para o mar, que ele nunca mais há de ver; para os céos, que recamados de sombras como que lhe toldam a esperança desapiedados, mas para os céos, que ele nunca mais há de ver; para a terra, que lhe flojera ao longe alegre e formosa como se o quiser consultar no último transe, mas para a terra, que ele nunca mais há de ver; para as memórias de um passado talvez prenhe de sangue e de remorsos, mas um passado, que ele nunca mais há de ver; e essa vista resumida, em fim, a luctar entre a mortalha e o vestido, entre o cárcere e a corda, entre a corda e a tumba, entre a morte e a vida, ali lhe foge toda para a vida; para a vida, que lhe matam, para a vida tão querida, tão linda e tão doce olhada do cadafalso, para a vida suspirada, gemida, e ansiosamente chorada daquela altura tremenda, para a vida porque é sua, para a vida porque é boa, para a vida ainda que fora má? é o amor do condenado; é o meu amor.

E como o amor da pomba é inocente a amar a pomba, como o amor da planta é viçoso a amar a planta, como o amor da briza é mimoso a amar a rosa, como o amor da criancinha é risonho e meigo a amar a mãe, como o amor da mãe é desalinhado é louco a amar o filho, como o amor do proscripto é gemedor a amar a pátria, como o amor do marinheiro é profundo, melancólico e desprezador a amar os mares, como o amor do captivo é meditado e desejoso a amar a liberdade, como o amor do condenado é vehementemente desesperado e terrível a amar a vida, é assim o amor do poeta a uma mulher; é o meu amor.

E tu és a minha pomba, a minha planta e a minha rosa, a minha mãe e o meu filho, a minha pátria e os meus mares, a minha liberdade e a minha vida! Mulher! eu te amo, eu te amo!