Texto - "A Mulher Portuguesa" Eduardo Shwalbach Lucci

feche e comece a digitar
O lindo tema "A Mulher Portuguesa" atraiu-me pelo seu encanto, mas
prejudica-o, a par da fraqueza da palavra, o defeito de ter de obedecer
a uma curva, que se retesa e quase instala nos limites apertados de uma
conferência. Ouvi-me, pois, mães, esposas, filhas, mulheres queridas,
que viveis dentro de corações e no coração trazeis sempre uma imagem,
com a benevolência, que deve sempre manter um amigo e um defensor. No
fértil poema, por onde a vossa alma transita através de almas,
procurarei colher a graça e o perfume para a expressão dos meus
sentimentos, atenuando com este valioso recurso os males de que faço
padecer tão brilhante assumpto.

Resultado para que se encaminha o contínuo esforço do homem, causa da
sua atividade e aspiração do seu espírito, é a mulher quem, com a
grandeza do infinito bem, ou a grandeza do infinito mal, nos conduz pela
vida fora numa ascensão gloriosa, ou numa derrocada trágica. Por ela o
homem crê, por ela descrê, por ela assassina, por ela morre. Altar e
hóstia, tortura e guilhotina, faz-nos viver a vida tal qual a dor
surriba a alegria, a punhalada espirra o sangue e os lábios guardam os
dentes. Mas nas suas epopeias sublimes e nas suas elegias tremendas
surge-nos como a confissão palpável da energia e da bondade divinas.
Hino e oração do amor, canta-lhe as alegrias e reza-lhe as tristezas;
alma da bondade, aroma da ternura e lágrima da dor, torna-se em
explicação religiosa, bela e harmônica da vida humana. Assim realizada
e assim realizando, Deus desce até á mulher, o homem sobe até ela.
Encontram-se no seu coração e beijam-se.

A Shakespeare ligaram um espírito-um andador, e a Sócrates, outro
espírito demônio, porque só pela interferência do sobre-humano lhes
admitiam as concepções. Não deve, portanto, causar reparo dizer-se que
a mulher tem sido sempre, e sempre será, o espírito familiar do homem.
O que ele produz de grande é ela quem lhe inspira, o que parece ir
além das suas forças vem da força que ela irradia. A ingratidão do
homem para com a mulher tem sido, porém, enorme. Não passa sem ela e
diz mal dela. Da antiguidade ao dia de hoje, os libelos acumulam-se
com uma injustiça que apavora. Eurípides põe na boca de Hipólito as
mais flagelados apóstrofes, que alguma vez contra ela foram
proferidas. Afirma que tudo quanto o homem tem de mau vem da mulher e
exclama: "Porque deuses imortais!-não foi dado ao homem o poder de
gerar o homem de uma pedra, de um pedaço de ouro, de um tronco de árvore
e não de um ventre de mulher? "Aristófanes, por intermédio de
Mnésico, nas Festas de Ceres e de Proserpina, simulando
defendê-la, quase sobreleva Eurípides no ataque. Strindberg, nos
Casados, acusa-a de só afagar para morder, e no Pai a violência
contra ela mantém-se constante e formidável, como lá de Nietzsche no
Assim falava Zarathustra, na Genealogia da Moral e em O Viajante e
a Sombra. Quanto mais culto, mais impiedoso, vituperando-a com
afrontosas opiniões e algemando-a com as leis por ele próprio
fabricadas. Mas nesta terra, eternamente fertilizada pelo vosso pranto e
florescida pelo vosso riso querida e boa mulher portuguesa!-talvez
porque assim o sol, nunca se disse grande mal a vosso respeito, nem a
lei foi das mais precárias para vossa defesa. Em Portugal nunca o
insulto dos filósofos e dos moralistas vos escalvou a dignidade, nem a
lei desceu a vexames, e também em nenhum outro país, por honra vossa e
alegria do nosso lar, a despeito das violências do instinto, da
barbaridade das velhas idades, da convulsão dos usos e costumes, a
mulher se conservou tão modesta, tão carinhosa, tão simples e tão casta!

A mulher portuguesa da Idade Média era a escrava do homem pelo corpo e
de Deus pelo espírito. Vista à luz da moral e do respeito de agora,
magoar-nos; mas o homem não a insultava, não lhe batia, não a violava sem
a lei lhe tomar contas. Magoa-nos, de nós, mas os fatores sociais não
lhe permitiam que fosse outra, porque nem ela, nem o seu amor estavam
dignificados. Aparece-nos amoral e subalterna, mero objeto de prazer,
massa de instinto e de passividade, de pernas cruzadas, em cima de um
estrado, a jogar o xadrez, a enfiar pérolas e aljôfares e a recitar as
Horas Canónicas e as Horas de Santa Maria com um isocronismo de
pêndulo. Que ha, porém, a esperar de uma época, em que a mãe do fundador
da monarquia alternada dos braços de um Trava para outro Trava, D. Affonso
Henriques arranca uma sua filha ao marido para a afivelar ao Braganção e
a abadessa Grácia Mendes, mandada vir para concubina de D. Affonso III,
vai pagando pelo caminho direitos de entrada ao fidalgo que a traz e
direitos de saída ao fidalgo que a leva!? Que querem de uma época, em
que o cristianismo abate o grande valor moral e artístico do corpo,
apontando-o como depósito de podridões e ninho de vícios, com o fim de
só glorificar a alma em consagração a Deus? Cuidar do corpo! Não; que a
carne é ignomínia. Escondê-lo bem, modificá-lo, desprezá-lo.

Sem esse culto a mulher rebaixa-se, apaga-se; a sua sensualidade
brutaliza-se. Sem a preparação indispensável, a sua inteligência não
scintilla. E assim vemos as afamadas mulheres de então, negada às suas
formas a veneração grega e privado o seu cérebro do cultivo romano, a
dominarem não pela beleza do espírito, mas pela beleza natural do
corpo e pela sensualidade unicamente animal, que o inflama numa revolta
ingénita contra o desprezo a que o votaram. Descurada material e
espiritualmente, que outra mulher podia sair desta sociedade? A mulher
subalterna, embora digna de todo o nosso respeito por essa sua própria
subalternidade, porque, entregue inteiramente aos seus ásperos
instintos, sabe orar e mortificar-se. Nestas condições e durante um
período tão seco e árido, de cílios e penitências, de passividade e
isolamento, erguem-se nos primeiros tempos da monarquia as infantas D.
Sancha e D. Thereza, irmãs de D. Affonso II, instituidoras das gafarias,
onde elas próprias lavam as chagas dos leprosos, e mais tarde, no
estrebuchar da dinastia afonsina para o alvor da dinastia de Aviz,
Deuladeu Martins, Brites de Almeida e Maria de Sousa. A primeira, por
seu valor e astúcia, imortalizou-se na defesa de Monção; a segunda torna
lendária uma pá de forno; a terceira salva a vida do Mestre de Aviz,
atravessando com uma parta zana o peito do renegado Gonçalo de Gusmão e
tolhendo o passo a uma partida de castelhanos. Que representam estas
cinco mulheres? A caridade e a bravura. Lances poéticos de amor,
fulgurações de espírito? Não se vislumbram. Apenas mortificação,
humildade e força animal ao serviço de um levantado espírito.

Chega a época de D. João I, e pela influência de D. Filipa de
Lencastre, a mulher começa a divinizar-se: deixa de ser uma cousa para
ser alguém. Forma-se a sua individualidade. Depois de uma curta
transição, em que a rainha, percebendo a necessidade de disciplinar as
paixões brutais dos homens, privou da escolha o instinto e estabeleceu
como que perdoem-me a palavra-uma coudelaria da corte, determinando
casamentos, desaparece a posse brutal, quebra-se a grilheta do Eu
quero aquela mulher, e iluminada por uma aura de sonho e de
fantasia, ela descerra os lábios trêmulos e murmura pela primeira vez:
"Eu amo!" Inicia-se o seu poema, nasce a flor do sentimento. É o influxo
das novelas do ciclo bretão, que se exerce; é a figura resplandecente
de Isolda que vem redimir a mulher portuguesa, transformando-a de
simples instrumento de prazer em força, direito e razão de amor,
engrandecendo-a, sensibilizando-a. É essa poesia, que, romantizando lhe
a imaginação por meio de formas ideais, lhe enche a alma e a vida com o
sopro perfumado da felicidade, ou com as torturas da desgraça, e lhe faz
antever a realidade humana pela mútua posse de duas almas. É Isolda,
debruçada sobre o cadáver de Tristão, a dizer-lhe: "Vendo-te morto, ó
meu Tristão, não posso, nem tenho o direito de viver. Morreste por meu
amor e eu morro de tristeza por não ter chegado a tempo." É a figura de
Isolda a espiritualizar a sensualidade na mulher, como a figura de
Galaaz, pela preocupação da virgindade, a influir sobre o homem,
dando-nos Nun'Álvares a resistir ao casamento, o infante D. Duarte a
consorciar-se, aos 37 anos, ainda de palmito e capela, e o cardeal D.
Jayme, que, instado pelos médicos para aquecer o leito ao calor de uma
mulher e com este agradável remédio salvar a vida, exclama
estupidamente: "Antes quero morrer limpo do que morrer sujo!"

A mulher português, até esse momento crisálida do amor, rompe o casulo
da sua inteligência, da sua dignidade e do seu coração e entra a
deslumbrar-nos com o resplendor do espírito e do sentimento, mais tarde
revigorado por outras influências derivadas em grande parte da
exuberante erudição que veio da Renascença. O seu voo eleva-se, e no
reinado de D. João II a mulher da corte já verseja e franquear o seu
entendimento a estudos profundos. A primeira verdadeiramente notável,
que se nos depara, é D. Filipa, filha do infante D. Pedro, trazendo
pela mão sua sobrinha, a infanta D. Joanna, por ela educada e para quem
traduziu do latim o Tratado da vida solitária;-tão culta, que
escreveu notas políticas, cuja importância ressalta na Prática ao Senado
de Lisboa, quando se receavam tumultos na capital, e tão artista, que
era a iluminadora das suas obras. Em seguida três rainhas exercem uma
ação decisiva no teatro português: D. Beatriz, mãe de D. Manoel, D.
Maria, sua mulher, e D. Leonor, viúva de D. João II. É sob a sua
proteção que nasce o teatro nacional. Pondo de parte a segunda, por
não português, vemos ao lado de D. Beatriz, a mais sumptuosa mulher do
seu tempo, D. Leonor a praticar o bem, a animar o talento e as artes.
Funda o hospital das Caldas, as Mercearias, a Misericórdia de Lisboa, dá
impulso á tipografia e acolhe Gil Vicente. Afirma-se uma obra
civilizadora pela conformidade do coração com o cérebro.

O brilhantismo literário da corte atinge a sua idade de ouro,
fortifica-se e expande-se para ir morrer no Paço da infanta D. Maria,
onde, na Academia artística e na Academia literária, ao lado das
italianas Angela e Luísa Sigea, brilham D. Leonor de Noronha, a
tradutora e anotadora de Marco Antonio Sabellico, Joanna Vaz, a loira
coimbrã, poetisa e historiadora, Paula Vicente com o seu pujante talento
dramático, e Publia Hortensia, que, aos 17 anos, discute Aristóteles
com homens de alto saber, depois de ter feito em Coimbra os cursos de
filosofia e teologia. Este banho de luz exalta a mulher, ainda com as
pernas cruzadas sobre um estrado, fechada em casa e recebendo apenas o
frade. A sua alma diviniza-se; a poesia cerca-a e ela poetisa também.
Intelectualize-se, sonha e tem visões. Mas a enorme transformação, que
neste período se operou entre nós pelo descobrimento do caminho marítimo
para a Índia, deslocando o centro de gravidade do empório de Veneza para
Lisboa, se deu ensejo à permuta intelectual com o estrangeiro, de onde
vieram homens dos mais doutos para as Universidades e mulheres ilustres
para o cenáculo da Infanta, trouxe conjuntamente o mercador, o homem de
negócios, o homem de dinheiro e com ele o prazer e o vício. Então o
português aferrolhar ainda mais a mulher, sobrepõe adufas a adufas,
rótulas a rotulas, cotando-lhe toda a comunicação para o exterior, e
os moralistas apregoavam que a missão feminina consistia somente em
fiar, conceber e chorar.

Já iluminada, sentindo bem a posse de si própria, á opressão contrapõe
o ardil e recorre à intermediária:-Branca Gil do Velho da Horta e
Brízida Vaz do Auto da Barca. Todavia, ao mesmo tempo que uns
enclausuravam as mulheres, outros embarcavam-se para a Índia,
deixando-as à vontade e só receosas de eles não chegarem a
partir: - diálogo entre a Ama e a Moça do Auto da Índia. A inteira
clausura tem de terminar; a reação vem logo depois. A mulher, se em
casa está posta em recato, encontra a sociabilidade na rua. Nas
fissuras dos pátios de comédia, nas tranqueiras das praças de touros,
nos palanques dos autos de fé, em todas as festas públicas junta-se com
o homem. Lisboa é Grécia e Roma:-em casa o gineceu ateniense, na rua o
convívio romano.