Texto - "Da Loucura e das Manias em Portugal" Júlio César Machado

feche e comece a digitar
Tudo é alegre, á entrada: flores e árvores. Dali a nada, - da porta para dentro parece já que passou o outono por cima da primavera daquele jardim!... Apagam-se as cores, escurece o céu, ouve-se instalar a casca das árvores... Principiam as fisionomias a transtornar-se; já os olhos não são outra cousa senão buracos luzidios; cavam-se as faces, parecem caretas os sorrisos, não têm os gestos significação, as feições são vagas, a forma tem contornos indecisos; tudo são personalidades fantásticas, existências fictícias; linguagem que não se entende; gente estranha, que dá ideia dos habitantes da lua!...

Alguns dançam, e cantam; e passa a tristeza naquela alegria, e transpõem-se efeitos de claro escuro na música e na voz deles, evolvendo-lhes a ideia como num crepúsculo!... Parece que se estão avistando ali as visões de Swedenborg, aqueles espíritos do ar que conversavam uns com os outros e que se entendiam pelo piscar dos olhos... Como essas tais conversas no fundo das nuvens, assim é desusado e insólito quanto por lá se ouve!

Às vezes chega a parecer-nos que é natural tudo aquilo; que o ser como nós somos e portar-se como nos portamos - é ser afetado, é ser pedante; que assim como na natureza tanto há sensitivas como a cevada e centeio, assim deve haver nas criaturas sentimentos complexos que a linguagem vulgar não poderia dar; que são eles quem tem juízo; melhor do que juízo, talento: a finura, o guindado, a quinta essência do espírito; que em nós há simplesmente mudança de convenções; que eles estão mais perto do estado natural; que tudo vai da maneira de ver as cousas e de as julgar; da opinião dos homens e do gênio e moda dos tempos; que também o amor já foi outro quando inspirava as filhas dos patriarcas a dar de beber aos pastores; e depois, na Ilíada, quando levava Helena ao leito nupcial de Paris; na Grécia, criança a quem ensinavam gracinhas anacreônticas; ébrio, nas orgias de Roma; na idade média, fada, estrela, anjo; mais tarde tendo asas como os desejos; e sendo hoje um casamento comercial, um dote de noiva, cem contos de réis em inscrições!...

Assim chega a pensar-se ali, que a vida, que é um entrudo, também varie de máscaras, de modas, de elegância e de falas; e que o estylo dos pobrezinhos doidos, enquanto diverso do dos tempos em que vamos de tanto tino e conceito, seja talvez mais subtil, mais colorido, e mais exato!...

Há ali, hoje, quinhentos e onze desses infelizes; duzentas e cinquenta e sete mulheres, duzentos e cinquenta e quatro homens; três crianças idiotas. Quando o marechal Saldanha fundou este hospital em 1850 o número dos alienados era de trezentos; ultimamente tem crescido por forma que foi preciso aumentar-o, acrescentar um pavimento, e anexar o edifício de recolhidas na travessa de S. Bernardino, onde vão pernoitar cem dos tranquilos e inválidos. Há pensionistas e indigentes. Os pensionistas dividem-se em quatro classes: e pagam, conforme as comodidades e o número de enfermeiros que requerem, 800 réis, 480 réis, ou 240 réis por dia, tendo os seus quartos em partição separada; os da 1. , 2. e 3. no mesmo pavimento; os da 4. ª em sala comum.

Os doentes entram ali por ordem da autoridade publica, ou a requerimento de particular, - com atestado do médico, auto de investigação, e, se são pobres, certidão do párocho, - e ficam quinze dias em observação; findos eles, ou a doença não se verifica e são imediatamente despedidos, ou, verificada a alienação, coloca-se o doente na repartição que o diretor lhe destina, e segue o tratamento.

O tratamento! Isto é, - o estudo, a observação constante, as experiências, mil tentativas, o diligenciar permanente de chamar à razão e ao sentimento das cousas aquelas pobres cabeças cansadas de sonhos, de lutas, de prazer às vezes, de amarguras, de esperanças, de enganos!... Vê Los como médico, como filósofo, e como moralista, - única maneira de poder assenhorear-se lhe dos segredos. São doidos; mas de onde provém cada uma daquelas loucuras, - a de um, que nunca perde a pista do carácter que tem, e em tudo que diz e no que faz vai de acordo sempre com a sua mania; a do outro que não pôde juntar ideias; a daquele, que conserva a lembrança do que fez durante os acessos, e pede depois desculpa brandamente, humildemente; a deste, que perdeu de todo a memória; a daquele outro, que a conserva de tudo, exceto de lugares, ou de datas!?