Na margem direita do Vouga, a cerca de doze quilômetros da sua foz, espreguiça-se indolentemente, numa série de formosos outeiros e encostas de suave declive, uma aldeia. A vista das casas disseminadas, como que em montículos, por entre o verde das árvores e dos pinheirais numa extensão de mais de quatro quilômetros, sugere-nos a ideia de que Deus as atiraram para cima da verdura de aquelas colinas, como o lavrador atira a mão-cheia da semeadura á terra fecundante. Mirando com galhardia do alto dos seus outeiros os lugares que lhe ficam próximos, ela parece sorrir-se com aquele sorriso de superioridade que uma mulher, cônscia da sua formosura, lança àquelas que não receberam da natureza os dons com que ela foi dotada. Bafejada pela amenidade do clima e pela limpidez e doçura de um ar dispneia, as suas melenas são brandamente agitadas pelo sopro suave duma aragem fagueira, e a fímbria do seu vestido, de um verde puro da vegetação do campo, é banhada pelas águas transparentes do meigo e terno Vouga. Eis, em simples bosquejo, o que é essa aldeia que se chama Querubim.
Querubim! Só o nome é bonito! Parece que nos deixa nos ouvidos um tinir semelhante ao de uma gargalhada inocente e ingênua de uma criança! Pensareis talvez que estas palavras são a expressão espontânea do sentimento que me inspira, como a todos nós, a evocação da terra que me viu nascer.
Não.
Quando pronuncio a palavra Querubim, a minha alma não experimenta aquela sensação que nos faz pulsar de entusiasmo o coração quando pronunciamos o nome da terra em que pela primeira vez abrimos os olhos no mundo; porque não foi ali que sorvi os primeiros tragos de leite no seio materno. Mas se não foi ali que lancei os primeiros vagidos, foi contudo onde a minha juventude deslizou suavemente como um murmurante arroio serpeando por um prado tapete de boninas e violetas. É por isso que, ao evocar esse nome, o sentimento que brota dentro do meu peito, se não tem o vigor patriótico, tem contudo uma doçura inexprimível - a saudade.
Nessa aldeia, uma saudade me ficou entrelaçada com os ramos de cada árvore; em cada rua, uma gota de sangue dos meus tenros pés feridos por uma pedra desligada da calçada; em cada salgueiro sobranceiro ao Vouga, um pedaço da minha alma... Por isso, ao recordara e ao contemplara, invade-me a mesma tristeza que invade uma pomba que, depois de ter, em manhãs frescas do verão, adejado mansamente sobre um campo atapetado de verdura, o vai encontrar, no inverno, sepultado nas águas.
Acaba de passar sobre o meu dorso o frio do meu vigésimo segundo inverno. Acabo de transpor o átrio do edifício que se chama - Vida. E, ainda que na primavera da minha mocidade, tenho contudo já sido açoitado por vendavais ferozes. É no meio das tormentas que tão cedo começaram de me assaltar, que eu procuro refocilar o espírito e fortalecer o coração nas doces recordações da minha juventude.
Ao fazer retroceder o pensamento por esse caminho orlado de odoríferas madressilvas e atapetado de violetas aromáticas, sinto que do meu íntimo se eleva um não sei quê parecido com um famosinho que vem condensarem-me nos olhos. Lágrimas? Não. Não chega a formar gotas. Um nevoeiro que me tolda a vista, mas muito tênue, que eu considero o chorar da alma. Porque a alma também chora.
Nas horas de angústia, quando uma nuvem me obscurece o horizonte, percorro com o pensamento esses caminhos silvestres por onde tantas vezes andei horas esquecidas á procura de ninhos; suponho-me deitado na caminha de ferro que minha mãe comprara para mim e quando, aos domingos, ao ouvir o badalar do sino logo de manhãzinha, eu me levantava, lavava, e minha mãe ia ajudar-me a vestir a roupa nova para ir á missa; e eu lá ia, muito sério, ao lado de minha mãe, com uma bengalinha de bambu que me tinham dado, e depois da missa voltamos para casa, eu almoçava e em seguida ia brincar, a maior parte das vezes para o campo, com os meus companheiros. Recordo-me destes com saudade, alguns dos quais, talvez mais felizes do que eu, já morreram, e outros, andam muito longe, alguns nem eu sei por onde, lutando com a vida, abreviando os anos da existência... E nestas recordações sinto um bem-estar indefinível que, comovendo-me, atenuam os dissabores da minha vida presente.
Oh! Quem me dera voltar aos dias da juventude! Tornar a gozar a única felicidade que nos é dado gozar na vida!... Impossível! A vida tem o seu movimento como as águas do meu querido Vouga que vai morrer ao mar. Ele também não retrocede às suas montanhas para d'ali voltar, em suaves murmúrios, a beijar as melenas dos sinceras o ouvir os doces cantares das camponesas em dias festivos e mitigar a ardência de tantos peitos apaixonados.
Meu caro leitor, se és cidadão, se passas a vida na atmosfera doentia da cidade, vem comigo à minha aldeia. Aqui, n'este paraíso, serás o Dante e eu serei Beatriz.
Verás maravilhas: mas não as maravilhas que nos fazem arregalar os olhos de espanto e que tens em abundância na tua cidade. Verás maravilhas da natureza que nos sensibilizam a alma e dulcifica o coração.
Serás conviva entre gente pobre, mas boa, nas suas simples refeições; serás testemunha e confidente de conversas despretensiosas e íntimas de paz, sossego e alegria, à lareira, enquanto o vento zune lá fora e a chuva fustiga as folhas das laranjeiras e entoa, nas telhas grossas da choupana, a sua canção monótona; assistir ás festas intimas dos simples, ao seu labor quotidiano, aos seus regozijo, às suas alegrias, aos seus pesares; palrar com a gente do campo e estudarás a sua boa índole; espraiar a vista por horizontes muito extensos, por sobre montanhas longínquas; aspirar a largos sorvos o ar purificado pela folhagem de centenárias de árvores, cruzado pelo esvoaçar de milhares de avezinhas silvestres e aromatizado pelo odor de Miríades de florinhas espalhadas por estes campos além; e o teu rosto adquirirá as cores róseas das pintadas maçãs camoecas que aqui há em abundância.
Depois, quando voltares à tua cidade, levarás d'aqui profundas saudades; a tua alma, ao recordares os mil encantos que a Electric Cavam, sentirá a mesma comoção que sentiu a do velho Horácio, quando este ínclito poeta, vendo-se sem a tranquilidade dos campos, disse - ó rus, quando te auspício! - oh! campo, quando te tornarei a ver!
Querubim! Só o nome é bonito! Parece que nos deixa nos ouvidos um tinir semelhante ao de uma gargalhada inocente e ingênua de uma criança! Pensareis talvez que estas palavras são a expressão espontânea do sentimento que me inspira, como a todos nós, a evocação da terra que me viu nascer.
Não.
Quando pronuncio a palavra Querubim, a minha alma não experimenta aquela sensação que nos faz pulsar de entusiasmo o coração quando pronunciamos o nome da terra em que pela primeira vez abrimos os olhos no mundo; porque não foi ali que sorvi os primeiros tragos de leite no seio materno. Mas se não foi ali que lancei os primeiros vagidos, foi contudo onde a minha juventude deslizou suavemente como um murmurante arroio serpeando por um prado tapete de boninas e violetas. É por isso que, ao evocar esse nome, o sentimento que brota dentro do meu peito, se não tem o vigor patriótico, tem contudo uma doçura inexprimível - a saudade.
Nessa aldeia, uma saudade me ficou entrelaçada com os ramos de cada árvore; em cada rua, uma gota de sangue dos meus tenros pés feridos por uma pedra desligada da calçada; em cada salgueiro sobranceiro ao Vouga, um pedaço da minha alma... Por isso, ao recordara e ao contemplara, invade-me a mesma tristeza que invade uma pomba que, depois de ter, em manhãs frescas do verão, adejado mansamente sobre um campo atapetado de verdura, o vai encontrar, no inverno, sepultado nas águas.
Acaba de passar sobre o meu dorso o frio do meu vigésimo segundo inverno. Acabo de transpor o átrio do edifício que se chama - Vida. E, ainda que na primavera da minha mocidade, tenho contudo já sido açoitado por vendavais ferozes. É no meio das tormentas que tão cedo começaram de me assaltar, que eu procuro refocilar o espírito e fortalecer o coração nas doces recordações da minha juventude.
Ao fazer retroceder o pensamento por esse caminho orlado de odoríferas madressilvas e atapetado de violetas aromáticas, sinto que do meu íntimo se eleva um não sei quê parecido com um famosinho que vem condensarem-me nos olhos. Lágrimas? Não. Não chega a formar gotas. Um nevoeiro que me tolda a vista, mas muito tênue, que eu considero o chorar da alma. Porque a alma também chora.
Nas horas de angústia, quando uma nuvem me obscurece o horizonte, percorro com o pensamento esses caminhos silvestres por onde tantas vezes andei horas esquecidas á procura de ninhos; suponho-me deitado na caminha de ferro que minha mãe comprara para mim e quando, aos domingos, ao ouvir o badalar do sino logo de manhãzinha, eu me levantava, lavava, e minha mãe ia ajudar-me a vestir a roupa nova para ir á missa; e eu lá ia, muito sério, ao lado de minha mãe, com uma bengalinha de bambu que me tinham dado, e depois da missa voltamos para casa, eu almoçava e em seguida ia brincar, a maior parte das vezes para o campo, com os meus companheiros. Recordo-me destes com saudade, alguns dos quais, talvez mais felizes do que eu, já morreram, e outros, andam muito longe, alguns nem eu sei por onde, lutando com a vida, abreviando os anos da existência... E nestas recordações sinto um bem-estar indefinível que, comovendo-me, atenuam os dissabores da minha vida presente.
Oh! Quem me dera voltar aos dias da juventude! Tornar a gozar a única felicidade que nos é dado gozar na vida!... Impossível! A vida tem o seu movimento como as águas do meu querido Vouga que vai morrer ao mar. Ele também não retrocede às suas montanhas para d'ali voltar, em suaves murmúrios, a beijar as melenas dos sinceras o ouvir os doces cantares das camponesas em dias festivos e mitigar a ardência de tantos peitos apaixonados.
Meu caro leitor, se és cidadão, se passas a vida na atmosfera doentia da cidade, vem comigo à minha aldeia. Aqui, n'este paraíso, serás o Dante e eu serei Beatriz.
Verás maravilhas: mas não as maravilhas que nos fazem arregalar os olhos de espanto e que tens em abundância na tua cidade. Verás maravilhas da natureza que nos sensibilizam a alma e dulcifica o coração.
Serás conviva entre gente pobre, mas boa, nas suas simples refeições; serás testemunha e confidente de conversas despretensiosas e íntimas de paz, sossego e alegria, à lareira, enquanto o vento zune lá fora e a chuva fustiga as folhas das laranjeiras e entoa, nas telhas grossas da choupana, a sua canção monótona; assistir ás festas intimas dos simples, ao seu labor quotidiano, aos seus regozijo, às suas alegrias, aos seus pesares; palrar com a gente do campo e estudarás a sua boa índole; espraiar a vista por horizontes muito extensos, por sobre montanhas longínquas; aspirar a largos sorvos o ar purificado pela folhagem de centenárias de árvores, cruzado pelo esvoaçar de milhares de avezinhas silvestres e aromatizado pelo odor de Miríades de florinhas espalhadas por estes campos além; e o teu rosto adquirirá as cores róseas das pintadas maçãs camoecas que aqui há em abundância.
Depois, quando voltares à tua cidade, levarás d'aqui profundas saudades; a tua alma, ao recordares os mil encantos que a Electric Cavam, sentirá a mesma comoção que sentiu a do velho Horácio, quando este ínclito poeta, vendo-se sem a tranquilidade dos campos, disse - ó rus, quando te auspício! - oh! campo, quando te tornarei a ver!