Não, decididamente não serei da festa. Imagino-a daqui. Imagino essas ruas lamacentas, coalhadas de povo sujo, com as cobaias negras ensopadas dos chuviscos; e imagino os lumes tremeluzentes das lanternas de papel, acendendo nas poças, pelo reflexo... grandes labaredas efêmeras, ziguezagueando. As lojas estão escancaradas ao público; frutos, flores, doces, carniças, bonecos, coisas santas, estendem-se pelos caminhos em prodigiosas teorias, em coloridos quase estonteantes; e é comprar, e comprar já, porque não tarda em romper o glorioso dia de descanso, o único na China em que o camponês, o artífice, o vendilhão, todos, cruzam os braços, não trabalham; e nem a peso de ouro se encontraria um linguado, uma caixa de fósforos, qualquer ínfimo objeto nos mercados. As espeluncas de jogo, em galas desusadas, oferecem-se, tentam a onda; e até pelas ruas o tabuleiro de azar se estende ao passeante. Que pechincha, se se apanha para a festa um acréscimo de pecúlio não esperado! O china adora o jogo - era preciso que ele adorasse alguma coisa! - mas hoje todos jogam, todos são chinas, e é isto um exemplo interessante da influência sugestiva das grandes maiorias; a mão mais circunspecta de funcionário, a mão mais mimosa de dama (de honra, em dialeto vulgar desta colônia) avançam sem pejo, arriscam a sorte vária umas pratinhas...
Quando bate meia noite; quando, junto do altar dos penates, se curvaram em piedosas orações milhares de cabeças agradecidas, e se queimaram papéis místicos, e se acenderam pivetes odoríferos; quando em plena rua um brado de aleluia os ecos acordou; dirige-se então a onda humana para o lar, já marcas feitas, já bolas esvaziadas; e vai surgir um grande dia votado inteiro ao descanso, votado à glorificação dos deuses, cuja magnânima assistência se exalta pelas graças concedidas e pelas graças que vão esperar-se!...
Mesquinha humanidade! como tu me entristeces, ó pobre humanidade, ó pobre família minha, ainda mais nos teus regozijos e nas tuas esperanças, do que nos teus choros e nos teus desenganos!... Para este banco chinês com quem me encontro agora, que explosão de bênçãos lhe estimula a sentimentalidade? que altos benefícios comemora? O bando abençoa a sua eterna existência de miséria, a miséria passada, a presente e a que fatalmente vai seguir-se lhe. Abençoa a labuta sem tréguas, em busca do punhado de arroz de cada dia; ora exercida no lar imundo, sem sombra de conforto; ora exercida pelos campos, nas várzeas, nas colinas, no amanho da terra, sob a opressão constante dos raios do sol que escalda, ou dos frios que paralisam; ora exercida nos barcos, que se cruzam na podridão dos estuários, ou pairam sobre a onda adormecida durante as calmas ríspidas, ou se desfazem no escarcéu, quando os tufões surgem em fúria. O bando abençoa a fatalidade da sua condição social, o problema espantoso, paradoxal, do seu feitio de ser, que em todas as depravações, em todas as iniquidades imagináveis, parece ir buscar as leis únicas por que se rege. O bando abençoa ainda as calamidades tremendas, que n'estes últimos tempos, como uma maldição divina, têm pairado sobre a imensa pátria: nas províncias do sul, nos seus centros mais populosos, é a peste, a peste negra, roubando em cada lar um ou dois filhos, ou o pai, ou a mãe, ou mesmo todos juntos, e vestido de luto, de tristes roupas alvas, os parentes, e ameaçando estabelecer-se definitivamente, enraizar como uma árvore de peçonha, de onde emanou a cada instante o veneno subtil, destruidor das turbas; e, para cúmulo de infortúnio e de descrédito, um vizinho, um povo irmão, o povo japonês, invade, vence e desbarata a China, morde e come pedaços do seu torrão sagrado, envergonha-a, oferece-a ao escárnio do mundo na misérrima condição da sua plebe e na opulenta infâmia dos seus nobres, desprestigiada enfim, indefesa à cobiça das gentes, aos homens loiros da Europa, que não tardará em vir espinha-la. - Embora! esqueçam-se hoje as misérias, vista-se o povo em gala, chovam bênçãos sobre o ano que começa. E amanhã, decorridas algumas horas de folgança, recomecem, prossigam, - pouco importa! - os turvos dias de amargura, a fatalidade da existência no antro, a dura labuta no campo e no barco, a faina eterna, a orgia torpe dos maridos, a escravidão das esposas, a venda das filhas a quem mais der, os horrores da prostituição, as vergastadas nas criadinhas, as extorsões dos mandarins, as torturas nos cárceres, a morte lenta nos patíbulos, a obra de destruição das epidemias e do ópio, as humilhações perante o vencedor, as exigências do Ocidente, as arrogâncias dos homens loiros...
Quando bate meia noite; quando, junto do altar dos penates, se curvaram em piedosas orações milhares de cabeças agradecidas, e se queimaram papéis místicos, e se acenderam pivetes odoríferos; quando em plena rua um brado de aleluia os ecos acordou; dirige-se então a onda humana para o lar, já marcas feitas, já bolas esvaziadas; e vai surgir um grande dia votado inteiro ao descanso, votado à glorificação dos deuses, cuja magnânima assistência se exalta pelas graças concedidas e pelas graças que vão esperar-se!...
Mesquinha humanidade! como tu me entristeces, ó pobre humanidade, ó pobre família minha, ainda mais nos teus regozijos e nas tuas esperanças, do que nos teus choros e nos teus desenganos!... Para este banco chinês com quem me encontro agora, que explosão de bênçãos lhe estimula a sentimentalidade? que altos benefícios comemora? O bando abençoa a sua eterna existência de miséria, a miséria passada, a presente e a que fatalmente vai seguir-se lhe. Abençoa a labuta sem tréguas, em busca do punhado de arroz de cada dia; ora exercida no lar imundo, sem sombra de conforto; ora exercida pelos campos, nas várzeas, nas colinas, no amanho da terra, sob a opressão constante dos raios do sol que escalda, ou dos frios que paralisam; ora exercida nos barcos, que se cruzam na podridão dos estuários, ou pairam sobre a onda adormecida durante as calmas ríspidas, ou se desfazem no escarcéu, quando os tufões surgem em fúria. O bando abençoa a fatalidade da sua condição social, o problema espantoso, paradoxal, do seu feitio de ser, que em todas as depravações, em todas as iniquidades imagináveis, parece ir buscar as leis únicas por que se rege. O bando abençoa ainda as calamidades tremendas, que n'estes últimos tempos, como uma maldição divina, têm pairado sobre a imensa pátria: nas províncias do sul, nos seus centros mais populosos, é a peste, a peste negra, roubando em cada lar um ou dois filhos, ou o pai, ou a mãe, ou mesmo todos juntos, e vestido de luto, de tristes roupas alvas, os parentes, e ameaçando estabelecer-se definitivamente, enraizar como uma árvore de peçonha, de onde emanou a cada instante o veneno subtil, destruidor das turbas; e, para cúmulo de infortúnio e de descrédito, um vizinho, um povo irmão, o povo japonês, invade, vence e desbarata a China, morde e come pedaços do seu torrão sagrado, envergonha-a, oferece-a ao escárnio do mundo na misérrima condição da sua plebe e na opulenta infâmia dos seus nobres, desprestigiada enfim, indefesa à cobiça das gentes, aos homens loiros da Europa, que não tardará em vir espinha-la. - Embora! esqueçam-se hoje as misérias, vista-se o povo em gala, chovam bênçãos sobre o ano que começa. E amanhã, decorridas algumas horas de folgança, recomecem, prossigam, - pouco importa! - os turvos dias de amargura, a fatalidade da existência no antro, a dura labuta no campo e no barco, a faina eterna, a orgia torpe dos maridos, a escravidão das esposas, a venda das filhas a quem mais der, os horrores da prostituição, as vergastadas nas criadinhas, as extorsões dos mandarins, as torturas nos cárceres, a morte lenta nos patíbulos, a obra de destruição das epidemias e do ópio, as humilhações perante o vencedor, as exigências do Ocidente, as arrogâncias dos homens loiros...