Texto - "O Mysterio da Estrada de Cintra" Ramalho Ortigão

feche e comece a digitar
Venho pôr nas suas mãos a narração de um caso verdadeiramente extraordinário em que intervim como facultativo, pedindo-lhe que, pelo modo que entender mais adequado, publique na sua folha a substância, pelo menos, do que vou expôr.

Os sucessos a que me refiro são tão graves, cerca-os um tal mistério, envolve-os uma tal aparência de crime que a publicidade do que se passou por mim torna-se importantíssima como chave única para a desencarnação de um drama que suponho terrível com quanto não conheça dele senão um só ato e ignore inteiramente quais foram as cenas precedentes e quais tenham de ser as últimas.

Há três dias que eu vinha dos subúrbios de Cintra em companhia de F.. . , um amigo meu, em cuja casa tinha ido passar algum tempo.

Montamos dois cavalos que F.. . tem na sua quinta e que deviam ser reconduzidos a Cinta por um criado que viera na véspera para Lisboa.

Era ao fim da tarde quando atravessámos a charneca. A melancolia do lugar e da hora tinha nos comunicado, e vínhamos silenciosos, abstraídos na paisagem, caminhando a passo.

A cerca de talvez de meia distância do caminho entre S. Pedro e o Cacém, n'um ponto a que não sei o nome, porque tenho transitado pouco naquela estrada, sitio deserto como todo o caminho através da charneca, estava parada uma carruagem.

Era um coupé pintado de escuro, verde e preto, e retirado por uma parelha cor de castanha.

O cocheiro, sem libré, estava em pé, de costas para nós, diante dos cavalos.

Dois sujeitos achavam-se curvados ao pé das rodas que ficavam para a parte da estrada por onde tínhamos de passar, e pareciam ocupados em examinar atentamente o jogo da carruagem.

Um quarto indivíduo, igualmente de costas para nós, estava perto do cavalo do outro lado do caminho, procurando alguma coisa, talvez uma pedra para calçar o trem.

É o resultado das sobras que tem a estrada, observou o meu amigo. Provavelmente o eixo partido ou alguma roda desembolada.

Passamos a este tempo pelo meio dos três vultos a que me referi, e F.. . tinha tido apenas tempo de concluir a frase que proferira, quando o cavalo que eu montava deu repentinamente meia volta rápida, violenta, e caiu de chapa.

O homem que estava junto do cavalo, ao qual eu não dava atenção porque ia voltado a examinar o trem, determinará essa queda, colhendo repentinamente e com a máxima força as rédeas que ficavam para o lado dele e impelindo ao mesmo tempo com um pontapé o flanco do animal para o lado oposto.

O cavalo, que era um poldro de pouca força e mal manejado, escorregou das pernas e tombou ao dar a volta rápida e precipitada a que o tinham constrangido.

O desconhecido fez levantar o cavalo segurando-lhe as rédeas, e, ajudando-me a erguer, indagava com interesse se eu teria molestado a perna que ficará embaixo do cavalo.

Este indivíduo tinha na voz a entoação especial dos homens bem educados. A mão que me ofereceu era delicada. O rosto tinha-o coberto com uma máscara de cetim preto. Entre Lembro-me de que trazia um pequeno fumo no chapéu. Era um homem ágil e extremamente forte, segundo denota o modo como fez cair o cavalo.

Ergui-me alvoroçadamente e, antes de ter tido ocasião de dizer uma palavra, vi que, ao tempo da minha queda, se travará luta entre o meu companheiro e os outros dois indivíduos que fingiam examinar o trem e que tinham a cara coberta como aquele de que já falei.

Puro Ponson du Terrail! dirá o sr. redator. Evidentemente. Parece que a vida, mesmo no caminho de Sintra, pode às vezes ter o capricho de ser mais romanesca do que pede a verossimilhança artística. Mas eu não faço arte, narro fatos unicamente.

F..., vendo o seu cavalo subitamente seguro pelas cambas do freio, tinha obrigado a larga-o um dos desconhecidos, em cuja cabeça descarregar uma pancada com o cabo do chicote, o qual o outro mascarado conseguira logo depois arrancar-lhe da mão.

Nenhum de nós trazia armas. O meu amigo tinha no entanto tirado da algibeira a chave de uma porta da casa de Cintra, e esporeava o cavalo estirando-se lhe no pescoço e procurando alcançar a cabeça daquele que o tinha seguro.

O mascarado, porém, que continuava a segurar em uma das mãos o freio do cavalo empinado, apontou com a outra um revólver à cabeça do meu amigo e disse-lhe com serenidade:

- Menos fúria! menos fúria!

O que levará com o chicote na cabeça e ficará por um momento encostado á portinhola do trem, visivelmente atordoado mas não ferido, porque o cabo era de baleia e tinha por castão uma simples guarnição feita com uma trança de china, havia já a este tempo levantado do chão e posto na cabeça o chapéu que lhe cairá.

A este tempo o que me derrubará o cavalo e me ajudara a levantar tinha-me deixado ver um par de pequenas pistolas de coronhas de prata, de aquelas a que chamam em França coups de poing e que varam uma porta a trinta passos de distância. Depois do que, me ofereceu delicadamente o braço, dizendo-me com afabilidade:

- Parece-me mais cômodo aceitar um lugar que lhe ofereço na carruagem do que montar outra vez no cavalo ou ter de arrastar a pé d'aqui á farmácia da Porcalhona a sua perna magoada.

Não sou dos que se amedrontam mais prontamente com a ameaça feita com armas. Sei que há um abismo entre prometer um tiro e desfecha-o. Eu movia bem a perna trilhada, o meu amigo estava montado em um cavalo possante; somos ambos robustos; poderíamos talvez resistir por dez minutos, ou por um quarto de hora, e durante esse tempo nada mais provável, em estrada tão frequentada como a de Cintra nesta quadra, do que aparecerem passageiros que nos prestassem auxílio.

Todavia confesso que me sentia atraído para o imprevisto de uma tão estranha aventura.

Nenhum caso anterior, nenhuma circunstância da nossa vida nos permitia suspeitar que alguém pudesse ter interesse em exercer conosco pressão ou violência alguma.