Texto - "Saudades: história de menina e moça" Bernardim Ribeiro

feche e comece a digitar
Neste monte, mais alto de todos, (que eu vim buscar pela soledade, diferente dos outros, que nele achei) passava eu a minha vida como podia, ora em me ir pelos fundos vales que o cingem derredor, ora em me pôr, do mais alto dele, a olhar a terra como ia acabar no mar, e depois o mar como se estendia logo após ela, para acabar onde ninguém o visse.

Mas, quando vinha a noite, entregue a meus pensamentos, e via as aves buscarem seus pousos, umas chamarem as outras, parecendo que queria sossegar a terra mesma; então eu, triste, com os cuidados dobrados com que amanhecia, me recolhia para a minha pobre casa, onde Deus me é boa testemunha de como as noites dormia!

Assim passava eu o tempo, quando, uma das passadas noites, pouco há, levantando-me, eu vi a manhã como se erguia formosa, e se estendia graciosamente por entre os vales, e deixar indo os autos.

O sol, já levantado até aos peitos, vinha tomando posse dos outeiros, como quem se queria assenhorear da terra.

As doces aves, batendo as asas, andavam buscando umas às outras; os pastores, tangendo as suas flautas, e rodeados dos seus gados, começavam a assomar pelas cumeadas.

Para todos, parecia que vinha aquele dia assim ledo. Só os meus cuidados, vendo, parece, como vinha poderoso seu contrário, se recolhiam a mim, pondo ante meus olhos para quanto prazer e contentamento pudera aquele dia vir, se não fora tudo tão mudado; de onde o que fazia alegre a todas as cousas, a mim só teve causa de fazer triste!

E como os meus cuidados, para o que tinha a ventura ordenado, me começassem de entrar pela lembrança de algum tempo, que foi, e que nunca fora, assenhorear-se assim de mim que não me podia já sofrer a par de minha casa, e desejava ir-me para lugares sós, onde desabafasse em suspirar.

E ainda bem não foi alto dia, quando eu (parece que acinte) determinei ir-me para o pé deste monte, que d'arvore dos grandes, e verdes ervas, e deleitosas sombras, é cheio; por onde corre um pequeno ribeiro de água de todo o ano, que, nas noites caladas, o rugido dele faz no mais alto deste monte um saudoso tom, que muitas vezes me tolhe o sono; onde, outras muitas, vou eu lavar minhas lágrimas, e onde, muitas, infinitas, às torno a beber.

Começava então de querer cair a calma: e no caminho, com a pressa, por fugir dela, ou pela desventura que me levava a mim, três ou quatro vezes caí ali; mas eu (que, depois de triste, cuidei que não tinha mais que temer) não olhei nada para aquilo, em que me parece que Deus me queria avisar da mudança que depois havia de vir. Chegando à borda do rio, olhei para onde haveria melhores sombras. Pareceram-me as que estavam além do rio. Disse então que aquilo se enxergava que era desejado tudo o que com mais trabalho se podia haver; porque não se podia ir além sem se passar a água, que corria ali mansa e mais alta que na outra parte.

Mas eu (que sempre folguei de buscar meu dono) passei além, e fui-me assentar sob a espessa sombra de um verde freixo, que, para baixo um pouco, estava.

Algumas das ramas estendiam-se por cima d'água, que ali fazia algum tanto de corrente, é, impedida por um penedo, que no meio dela estava, se partia para um e outro lado, murmurando.

Eu, que os olhos levava ali postos, comecei a cuidar que também nas cousas que não tinham entendimento havia fazerem-se dando umas às outras.

Estava dali aprendendo a tomar algum conforto no meu mal: porque assim aquele penedo estava contrariando aquela água que queria ir seu caminho, como as minhas desventuras no outro tempo costumavam fazer a tudo o que eu mais queria, - que já agora não quero nada. E crescia-me d'aquilo um pesar!

Ao cabo do penedo, tornava a água a juntar-se, e ir seu caminho sem estrondo algum, antes parecia que corria ali mais depressa que pela outra parte: e dizia eu que seria aquilo para se apartar mais rapidamente daquele penedo, inimigo do seu curso natural, que, como por força, ali estava.

Não tardou muito que, estando eu assim cuidando, sobre verde um ramo que por cima da água se estendia, se veio pousar um rouxinol. Começou a cantar tão docemente que de todo me levou após si o meu sentido d'ouvir. E ele cada vez crescia mais em seus queixumes, que parecia que, como cansado, queria acabar, senão quando tornava, como que começava.

Então (triste da avezinha) estando-se assim queixando, não sei como, se caiu morta sobre aquela água! Caindo por entre as ramas, muitas folhas caíram também com ela. Pareceu aquilo sinal de pesar, naquele arvoredo, de caso tão desastrado.

Levava-a após si a água, e as folhas após ela. Quisera-a eu ir apanhar, mas pela corrente que ali fazia, e pelo mato que dali para baixo, cerca do rio, logo estava, presentemente se alongou da vista.

O coração me doeu tanto, então, em ver tão depressa morto quem antes, tampouco havia, vira estar cantando, que não pude ter as lágrimas.

Certamente que por causa do mundo, depois que perdi outra cousa, me não pareceu a mim que assim chorasse de vontade; mas em parte este meu cuidado não foi em vão; porque, ainda que a desventura daquela avezinha fosse causa de minhas lágrimas, lá, ao sair delas, foram juntas outras muitas lembranças tristes.

Grande pedaço de tempo estive assim embargada dos meus olhos, entre os cuidados que muito havia que me tinham já então, e ainda terão, até que venha o tempo em que alguma pessoa estranha, com dó de mim, com as suas mãos cerre estes meus olhos, que nunca foram fartos de me mostrarem mágoas de si.

E estando assim, olhando para onde corria a água, ouvi bulir o arvoredo. Cuidando que fosse outra cousa, tomou-me medo; mas, olhando para ali, vi que vinha uma mulher; e, pondo nela bem os olhos, vi que era de corpo alto, disposição boa, e o rosto de dona, senhora do tempo antigo. Vestida toda de preto, no seu manso andar, e meneios seguros do corpo, do rosto e do olhar, parecia acatamento. Vinha só, e tão pensativa que não apartava os ramos de si, senão quando lhe impediam o caminho, ou lhe feriam o rosto.

Os seus pés trazia por entre as frescas ervas, e parte do vestido estendido por elas. E, entre uns vagarosos passos que ela dava, de quando em quando colhia um cansado fôlego, como que lhe queria falecer a alma.

Sendo cerca de mim e me viu, ajuntando as mãos, á maneira de medo de mulher, um pouco, como que vira cousa desacostumada, ficou; e eu também assim estava, - não de medo, que a sua boa sombra logo não consentiu, mas da novidade d'aquilo que ainda ali não vira, havendo muito que, por meu mal, tinha frequentado aquele lugar, e toda aquela ribeira.