Não restava em Portugal, da parte de D. Sancho, senão o castelo de Coimbra: mas era a fortaleza mais honrosa do reino, porque esta cidade tinha o título de capital, e servia de residência aos Reis. Quem ali governava era D. Martim de Freitas, Cavaleiro muito famoso, e de ilustre ascendência. Tendo o Conde feito todas as diligências possíveis com ele para que lhe entregasse a praça, antes de recorrer às armas, Freitas o desenganou de tais esperanças, e disse-lhe: que enquanto vivesse El Rei D. Sancho, nada lhe seria entregue sem sua ordem; e que para ele, D. Martim, a morte ou os maus tratamentos eram coisa menos de temer que a deslealdade. Que portanto podia dispensar-se de lhe meter medo com a morte, ou com outros perigos, porque estava decidido a sofrer tudo; e que, finalmente, ele não estava no mundo para fazer estado da vida, mas sim para ganhar honra, e para a conservar. O Conde pôs o cerco, e fez atacar muitas vezes o castelo.
Tanto valor mostrou-se de ambas as partes, que de ambas igualmente houve ali grande número de mortos e feridos; e ainda que os combates se renovassem, o alentado esforço do Alcaide e de seus companheiros era tal, que bem pouco serviu o trabalho dos sitiantes. O Conde, indignado, fez solene juramento de não levantar o cerco enquanto não obtivesse o castelo por assalto ou por fome. Tanto ele perseverou, que as provisões e a água começarão a faltar aos de dentro; chegarão até a come as bestas de carga, os cães, e os gatos, e outras coisas desusadas, a que repugna o natural do homem. O Conde, sabendo em que miséria estavam, e sentindo-se pesaroso de que homens tão corajosos sofressem tanto, lhes mandou pedir que se rendessem, dizendo-lhes, que, sem causa, se não matassem a si próprios; que não tinham razão de crer que aquilo fosse proeza, que antes era loucura, porque nada poderiam conseguir. D. Martim de Freitas respondeu, que, pela sua honra, não desistiria do desígnio em que estava.
Achando-se estes Cavaleiros, pois, em grande tristeza, eis que do alto do castelo virão passar um Cavaleiro que a vão atravessava o Mondego, e cujo cavalo, saciado, de nenhuma maneira lhe importava beber. Magoados de se verem em tal estado, que até inveja tinham de uma besta, começaram a lamentar-se, a dizer mal da sua sorte; e entre os que assim falavam, havia parentes e amigos do Alcaide. Considerando o trabalho que sofriam, e a necessidade em que se achavam, sem esperança de ajuda ou socorro, e meditando, além disso, em que D. Martim era o único que perseverava n aquela obstinação, disseram-lhe, que para terem vida, ele e os seus, era preciso entregar o castelo. D. Martim respondeu-lhes: "Deus não permita que eu obedeça a um tal conselho, e que haja uma semelhante nódoa na minha honra!" Ele acrescentou que não consentiria jamais numa traição igual à que lhe seria preciso cometer, se entregasse o castelo a outro que não fosse aquele de quem o receberá em fé e homenagem; que um tal dever se não quebraria, pelo menos enquanto ele vivesse; que bem via a tribulação em que estavam com ele, e que a sua era maior, porque sentia o mal geral e o seu; mas que, se queriam lembrar-se dos males, ainda maiores, que alguns cercados tinham padecido para manter a sua lealdade, eles sofrerão com mais paciência. Deus queira, pela sua misericórdia, continuou ele, socorrer-vos, e fazer-vos sair prontamente deste trabalho. Algum dia alegrará-vos de ter para contar a vossos filhos nos males que tendes suportado, e isto não será-lhes uma fraca honra, nem uma fraca instrução para a vossa descendência. Via-lhes também recordando, que, se obtendo alguma coisa de beber e de comer, eles salvarão a sua vida, esta vida devia ser curta, mas que a infâmia de não ter acabado com glória coisa tão bem começada, duraria sempre. Demais, que tudo o que lhes pedia, era que, como homens que mais amavam o espírito do que a carne, o ajudassem, e não o deixassem a revelia, ao menos em quanto isto estivesse em seu poder. Finalizou com estas palavras: "O trabalho e a paciência tem sido comuns, a gloria seja também igual para todos. " D. Martim de Freitas, para mais abonar a firme resolução em que estava, disse ainda "que a honra de sua filha lhe era mui chara, mas que mais depressa cederia de sua virgindade, que entregaria a fortaleza de Coimbra. " Depois que D. Martim proferira estas palavras, ficarão como assombrados do seu zelo, louvarão sua bondade, tomarão eles mesmos novo ânimo, e prometeram-lhe de satisfazer o seu desejo, tivesse ou não razão; acrescentando que em nenhuma circunstância o abandonarão, e que antes sucumbirão todos que faltarem a esta promessa.
O Cavaleiro e os seus continuavam a estar nesta posição difícil, havendo já com tudo perto de um ano que El Rei D. Sancho tinha ido para Castela. Mas naquela época o Conde de Bolonha recebeu notícia certa da morte de seu irmão, e sentindo-se magoado da perda de tantos homens de bem, e admirado de tão grande lealdade, enviou-lhes munições de boca, assim como refrescos. Mandou também juntamente uma mensagem para o Alcaide, em que lhe participava que El Rei era morto, e que se ele queria pessoalmente informar-se disso, lhe permitia-lhe, Martim de Freitas, a vida a Castela, e a volta à fortaleza, sem que, durante a jornada, tivesse receio de algum ataque da sua parte.
D. Martim foi a Toledo, e bem que soubesse de todos que El Rei D. Sancho era morto, bem que lhe mostrasse onde estava enterrado, ainda isto o não satisfez. Para adquirir mais certeza fez levantar a pedra que o cobria, e quando conheceu bem que era ele, diz-se, que, diante de numerosas testemunhas, quis satisfazer todas as promessas de homenagem: pôs as próprias chaves da fortaleza no braço direito Del Rei D. Sancho, e autenticando esse fato com notários públicos, de quem requererá a presença, fez fechar o túmulo.
De volta para Coimbra, entrou de noite, e em segredo, no castelo: foi dali que no dia seguinte, de manhã, enviou a dizer ao Conde, já reconhecido Rei, que fosse tomar posse da praça, que ele D. Martim de Freitas podia entregar-lhe. El Rei se dirigiu à fortaleza, e foi o mesmo Alcaide quem lhe abriu. Então, pegando pela mão de sua mulher e filhos, os pôs fora, dizendo-lhes: - Deixemos este castelo a quem pertence. Depois, pondo um joelho em terra diante do Rei, e pegando nas chaves da praça, ofertou-lhes, pronunciando estas palavras: - Senhor, pois que aprouve a Deus que D. Sancho, vosso irmão, morresse, tomai as vossas chaves e o vosso castelo. Da hora em diante vos terei por meu Rei e Senhor; e ao mesmo tempo mostrou a Affonso as escrituras que mandara fazer em Toledo, para sua honra e descargo.
Um Cavaleiro que estava presente o interrogou, dizendo: Porque não pedia perdão a El Rei de todos os desgostos que lhe havia causado, e do agravo que lhe fizera, deixando matar e ferir tanta gente, e negando por tanto tempo ao seu Soberano a entrada de uma praça que era sua. Como D. Martim de Freitas quisesse desculpar-se, e mostrar que semelhante coisa se não devia esperar dele, El Rei acudi prontamente em seu socorro, dizendo que D. Martim não tinha de que pedir perdão; que não cometeu falta alguma; que antes, bem ao contrário, a sua ação valorosa era de louvar, digna de um bom Cavaleiro, e de um fidalgo leal; e que em memória deste feito lhe entregava o castelo, para que ele e seus descendentes o guardassem, sem que ele nem seus sucessores fossem obrigados ao juramento de fidelidade. D. Martim respondeu a El Rei que olhava esta oferta como uma grande mercê, mas que de nenhum modo a aceitava; e que amaldiçoava seus filhos, seus netos, e todos os seus descendentes, se por um castelo chegassem a prestar homenagem ao Rei, ou a qualquer outro indivíduo.
Eis aqui o que era a lealdade Portuguesa.
Tanto valor mostrou-se de ambas as partes, que de ambas igualmente houve ali grande número de mortos e feridos; e ainda que os combates se renovassem, o alentado esforço do Alcaide e de seus companheiros era tal, que bem pouco serviu o trabalho dos sitiantes. O Conde, indignado, fez solene juramento de não levantar o cerco enquanto não obtivesse o castelo por assalto ou por fome. Tanto ele perseverou, que as provisões e a água começarão a faltar aos de dentro; chegarão até a come as bestas de carga, os cães, e os gatos, e outras coisas desusadas, a que repugna o natural do homem. O Conde, sabendo em que miséria estavam, e sentindo-se pesaroso de que homens tão corajosos sofressem tanto, lhes mandou pedir que se rendessem, dizendo-lhes, que, sem causa, se não matassem a si próprios; que não tinham razão de crer que aquilo fosse proeza, que antes era loucura, porque nada poderiam conseguir. D. Martim de Freitas respondeu, que, pela sua honra, não desistiria do desígnio em que estava.
Achando-se estes Cavaleiros, pois, em grande tristeza, eis que do alto do castelo virão passar um Cavaleiro que a vão atravessava o Mondego, e cujo cavalo, saciado, de nenhuma maneira lhe importava beber. Magoados de se verem em tal estado, que até inveja tinham de uma besta, começaram a lamentar-se, a dizer mal da sua sorte; e entre os que assim falavam, havia parentes e amigos do Alcaide. Considerando o trabalho que sofriam, e a necessidade em que se achavam, sem esperança de ajuda ou socorro, e meditando, além disso, em que D. Martim era o único que perseverava n aquela obstinação, disseram-lhe, que para terem vida, ele e os seus, era preciso entregar o castelo. D. Martim respondeu-lhes: "Deus não permita que eu obedeça a um tal conselho, e que haja uma semelhante nódoa na minha honra!" Ele acrescentou que não consentiria jamais numa traição igual à que lhe seria preciso cometer, se entregasse o castelo a outro que não fosse aquele de quem o receberá em fé e homenagem; que um tal dever se não quebraria, pelo menos enquanto ele vivesse; que bem via a tribulação em que estavam com ele, e que a sua era maior, porque sentia o mal geral e o seu; mas que, se queriam lembrar-se dos males, ainda maiores, que alguns cercados tinham padecido para manter a sua lealdade, eles sofrerão com mais paciência. Deus queira, pela sua misericórdia, continuou ele, socorrer-vos, e fazer-vos sair prontamente deste trabalho. Algum dia alegrará-vos de ter para contar a vossos filhos nos males que tendes suportado, e isto não será-lhes uma fraca honra, nem uma fraca instrução para a vossa descendência. Via-lhes também recordando, que, se obtendo alguma coisa de beber e de comer, eles salvarão a sua vida, esta vida devia ser curta, mas que a infâmia de não ter acabado com glória coisa tão bem começada, duraria sempre. Demais, que tudo o que lhes pedia, era que, como homens que mais amavam o espírito do que a carne, o ajudassem, e não o deixassem a revelia, ao menos em quanto isto estivesse em seu poder. Finalizou com estas palavras: "O trabalho e a paciência tem sido comuns, a gloria seja também igual para todos. " D. Martim de Freitas, para mais abonar a firme resolução em que estava, disse ainda "que a honra de sua filha lhe era mui chara, mas que mais depressa cederia de sua virgindade, que entregaria a fortaleza de Coimbra. " Depois que D. Martim proferira estas palavras, ficarão como assombrados do seu zelo, louvarão sua bondade, tomarão eles mesmos novo ânimo, e prometeram-lhe de satisfazer o seu desejo, tivesse ou não razão; acrescentando que em nenhuma circunstância o abandonarão, e que antes sucumbirão todos que faltarem a esta promessa.
O Cavaleiro e os seus continuavam a estar nesta posição difícil, havendo já com tudo perto de um ano que El Rei D. Sancho tinha ido para Castela. Mas naquela época o Conde de Bolonha recebeu notícia certa da morte de seu irmão, e sentindo-se magoado da perda de tantos homens de bem, e admirado de tão grande lealdade, enviou-lhes munições de boca, assim como refrescos. Mandou também juntamente uma mensagem para o Alcaide, em que lhe participava que El Rei era morto, e que se ele queria pessoalmente informar-se disso, lhe permitia-lhe, Martim de Freitas, a vida a Castela, e a volta à fortaleza, sem que, durante a jornada, tivesse receio de algum ataque da sua parte.
D. Martim foi a Toledo, e bem que soubesse de todos que El Rei D. Sancho era morto, bem que lhe mostrasse onde estava enterrado, ainda isto o não satisfez. Para adquirir mais certeza fez levantar a pedra que o cobria, e quando conheceu bem que era ele, diz-se, que, diante de numerosas testemunhas, quis satisfazer todas as promessas de homenagem: pôs as próprias chaves da fortaleza no braço direito Del Rei D. Sancho, e autenticando esse fato com notários públicos, de quem requererá a presença, fez fechar o túmulo.
De volta para Coimbra, entrou de noite, e em segredo, no castelo: foi dali que no dia seguinte, de manhã, enviou a dizer ao Conde, já reconhecido Rei, que fosse tomar posse da praça, que ele D. Martim de Freitas podia entregar-lhe. El Rei se dirigiu à fortaleza, e foi o mesmo Alcaide quem lhe abriu. Então, pegando pela mão de sua mulher e filhos, os pôs fora, dizendo-lhes: - Deixemos este castelo a quem pertence. Depois, pondo um joelho em terra diante do Rei, e pegando nas chaves da praça, ofertou-lhes, pronunciando estas palavras: - Senhor, pois que aprouve a Deus que D. Sancho, vosso irmão, morresse, tomai as vossas chaves e o vosso castelo. Da hora em diante vos terei por meu Rei e Senhor; e ao mesmo tempo mostrou a Affonso as escrituras que mandara fazer em Toledo, para sua honra e descargo.
Um Cavaleiro que estava presente o interrogou, dizendo: Porque não pedia perdão a El Rei de todos os desgostos que lhe havia causado, e do agravo que lhe fizera, deixando matar e ferir tanta gente, e negando por tanto tempo ao seu Soberano a entrada de uma praça que era sua. Como D. Martim de Freitas quisesse desculpar-se, e mostrar que semelhante coisa se não devia esperar dele, El Rei acudi prontamente em seu socorro, dizendo que D. Martim não tinha de que pedir perdão; que não cometeu falta alguma; que antes, bem ao contrário, a sua ação valorosa era de louvar, digna de um bom Cavaleiro, e de um fidalgo leal; e que em memória deste feito lhe entregava o castelo, para que ele e seus descendentes o guardassem, sem que ele nem seus sucessores fossem obrigados ao juramento de fidelidade. D. Martim respondeu a El Rei que olhava esta oferta como uma grande mercê, mas que de nenhum modo a aceitava; e que amaldiçoava seus filhos, seus netos, e todos os seus descendentes, se por um castelo chegassem a prestar homenagem ao Rei, ou a qualquer outro indivíduo.
Eis aqui o que era a lealdade Portuguesa.