Ao nauta que do mar tempestuoso
Vem dos baldões aspérrimos cansado,
Tu te mostras, ó ilha feiticeira,
Como, depois de somno fadigoso
De horríveis pesadelos,
Um dia delicioso,
Todo alegria e festa e raios belos,
Um claro dia pelo sol doirado.
Se isto é hoje d'esta arte,
O que seria d'antes,
Quando te desvendaste a vez primeira
Da névoa e do mistério em grande parte
Á vista dos pasmados navegantes!
Que, não bastando ainda estar perdida
No meio do oceano,
Por séculos dos homens escondida
Em recôndito arcano,
Tu, qual donzella cândida e medrosa,
Que do banho saísse,
E a nudez, vergonhosa,
De alvo cendal cobrisse,
Em manto de neblina te embuçadas:
E até do mar, que às plantas te gêmea,
E até do próprio sol, que te queria,
A virgem formosura recatadas.
Porém chegou o dia
Pelo Eterno marcado,
Em que, apesar de esquiva,
Te rendeste captiva
Do sol da nossa glória á viva chamma,
Ao generoso brado
Do grande Henrique de perpétua fama,
Quando, assim como do Sinai o monte,
Sagres de raios coroou a fronte,
E, desmedido pharo,
Ao marinheiro ignaro
Fez dissipar as trevas do horizonte.
Pandas as brancas velas,
Atravessadas pela cruz de Christo,
Eis no líquido argento
As fortes, portuguesas caravellas
Correm ao sopro do inconstante vento.
Assim na idade -média a Europa há visto,
Assinalados por egual emblema,
Passarem os guerreiros
A Ásia, para em rabido combate
De anos e anos inteiros
Dar ao sagrado túmulo o resgate.
É o mesmo o nosso tema:
A fé; também o oriente procuramos,
E, como eles, também a amiga espada,
A par da cruz, intrépidos levamos
A uma outra cruzada.
Ruem os furacões; atroam os ares;
É plúmbeo o céu; nas lôbregas entranhas,
Quaes líquidas montanhas,
Volve-se em desespero os torvos mares.
Pelas ondas corridos,
Os pequenos baixeis tragam a morte,
Já quase submergidos;
Porém não desanima a gente forte.
Invoca a soberana potestade,
Que a protege de há muito, e a praia ignota,
Na escura serração da tempestade,
Compadecida, lhe dirige a rota.
Alçando as mãos a Deus, ainda molhadas
Das ondas salitrosas,
A marítima turba lhe agradece
As terras separadas,
As vidas tanto a pique assim poupadas,
Com palavras piedosas,
E murmura esta prece:
Senhor, se, como outrora do teu povo
Os passos pelo ermo encaminhaste,
A este porto santo nos guiaste,
Dá-nos, dá-nos ainda um signal novo,
Outro maior signal de teus favores;
Teus filhos também somos;
Às ásperas fadigas,
Ao bravo pego, ás armas inimigas
Por ti só, pela pátria nos expomos;
Faze que esta primeira descoberta,
Que o dom d'esta ilha estéril e deserta
Seja seguido de outros dons melhores.
Dizem; abaixam da cerulea altura
Os olhos; e, ao baixá los, de repente
Vêem longe sahir de névoa escura,
Que mais e mais se torna transparente,
Uma visão da phantazia ardente?
De um monte a sobranceria catadura?
Eia; ao mar; o Senhor nos presta ouvidos;
Temos fé que é verdade essa aparência,
Não devaneio apenas dos sentidos.
É da sua clemência
Quem sabe se o signal; ao mar corramos.
Bradam; soltam ao vento a larga vela;
Já chegam; já de todo a alva neblina
Aqui, ali, se esvai ou se adelgaça,
E mostra, meio ocultos, com mais graça,
Flores, verdura, emaranhados ramos,
Uma terra tão bela,
Que mais semelhan aparição divina,
Ou cahida do céo fulgida estrela.
Assim aos denodados portuguezes
Apareceste, ó ilha da Madeira,
Para os avigora res nos revezes;
Assim aos olhos de Noé outrora,
Depois das grandes águas,
Apareceu o arco da aliança,
Entre ele e Deus, o íris da bonança,
Que do dilúvio o confortou nas mágoas.
Sim, tu foste a esperança,
Que Deus, á nossa empresa favorável,
Nos mostrou para nos dar alentos,
E, através do luctar dos elementos,
Cumprirmos nosso fado incomparável.
D'aqui, cheios de arrojo, nós partimos,
E d'Asia, e d'Africa e do Novo Mundo
Em grande parte as plagas descobrimos,
E pelo pégo fundo
Em roda o globo co'os baixeis medimos.
Como és bela! Da Grécia conhecida,
Tu serias de Vênus a morada,
Ou fôra, ao ver-te assim do mar sahida,
A nascença de Vênus fabulada.
Ficará a tela dos Jardins de Armida,
Sendo feita por ti, mais bem pintada,
E a descripção da Ilha dos Amores
Realçaram mais os teus primores.
Todos, à uma, os povos te namorar;
Mas a todos te mostrar insensível.
Embalde os filhos de Albion te adoram,
Te chamam Flor do Oceano imarcescível.
Nossos antigos os primeiros foram;
Por outrem nos deixar não te é possível.
Do céo, dos mares e de Deus à face
De nós contigo se firmou o enlace.
Por seres tão fiel, tão português
Mais ainda te estimo, ilha formosa;
Mas por laço diverso anda a ti presa
Minh'alma: da existência trabalhosa
Com risos esmaltar-me a tristeza,
Na quadra, embora amarga, descuidos
Da passada, inexperta juventude,
Quando uns dias viver em ti eu pude.
E agora que de ti me têm distante
O lugar e dos anos a carreira,
Phantazia-te ainda mais brilhante,
Vejo-te mais ainda feiticeira,
Que me recorda teu fluir constante
A minha primavera passageira,
A minha tão querida mocidade,
E és para mim um echo, uma saudade.
Vem dos baldões aspérrimos cansado,
Tu te mostras, ó ilha feiticeira,
Como, depois de somno fadigoso
De horríveis pesadelos,
Um dia delicioso,
Todo alegria e festa e raios belos,
Um claro dia pelo sol doirado.
Se isto é hoje d'esta arte,
O que seria d'antes,
Quando te desvendaste a vez primeira
Da névoa e do mistério em grande parte
Á vista dos pasmados navegantes!
Que, não bastando ainda estar perdida
No meio do oceano,
Por séculos dos homens escondida
Em recôndito arcano,
Tu, qual donzella cândida e medrosa,
Que do banho saísse,
E a nudez, vergonhosa,
De alvo cendal cobrisse,
Em manto de neblina te embuçadas:
E até do mar, que às plantas te gêmea,
E até do próprio sol, que te queria,
A virgem formosura recatadas.
Porém chegou o dia
Pelo Eterno marcado,
Em que, apesar de esquiva,
Te rendeste captiva
Do sol da nossa glória á viva chamma,
Ao generoso brado
Do grande Henrique de perpétua fama,
Quando, assim como do Sinai o monte,
Sagres de raios coroou a fronte,
E, desmedido pharo,
Ao marinheiro ignaro
Fez dissipar as trevas do horizonte.
Pandas as brancas velas,
Atravessadas pela cruz de Christo,
Eis no líquido argento
As fortes, portuguesas caravellas
Correm ao sopro do inconstante vento.
Assim na idade -média a Europa há visto,
Assinalados por egual emblema,
Passarem os guerreiros
A Ásia, para em rabido combate
De anos e anos inteiros
Dar ao sagrado túmulo o resgate.
É o mesmo o nosso tema:
A fé; também o oriente procuramos,
E, como eles, também a amiga espada,
A par da cruz, intrépidos levamos
A uma outra cruzada.
Ruem os furacões; atroam os ares;
É plúmbeo o céu; nas lôbregas entranhas,
Quaes líquidas montanhas,
Volve-se em desespero os torvos mares.
Pelas ondas corridos,
Os pequenos baixeis tragam a morte,
Já quase submergidos;
Porém não desanima a gente forte.
Invoca a soberana potestade,
Que a protege de há muito, e a praia ignota,
Na escura serração da tempestade,
Compadecida, lhe dirige a rota.
Alçando as mãos a Deus, ainda molhadas
Das ondas salitrosas,
A marítima turba lhe agradece
As terras separadas,
As vidas tanto a pique assim poupadas,
Com palavras piedosas,
E murmura esta prece:
Senhor, se, como outrora do teu povo
Os passos pelo ermo encaminhaste,
A este porto santo nos guiaste,
Dá-nos, dá-nos ainda um signal novo,
Outro maior signal de teus favores;
Teus filhos também somos;
Às ásperas fadigas,
Ao bravo pego, ás armas inimigas
Por ti só, pela pátria nos expomos;
Faze que esta primeira descoberta,
Que o dom d'esta ilha estéril e deserta
Seja seguido de outros dons melhores.
Dizem; abaixam da cerulea altura
Os olhos; e, ao baixá los, de repente
Vêem longe sahir de névoa escura,
Que mais e mais se torna transparente,
Uma visão da phantazia ardente?
De um monte a sobranceria catadura?
Eia; ao mar; o Senhor nos presta ouvidos;
Temos fé que é verdade essa aparência,
Não devaneio apenas dos sentidos.
É da sua clemência
Quem sabe se o signal; ao mar corramos.
Bradam; soltam ao vento a larga vela;
Já chegam; já de todo a alva neblina
Aqui, ali, se esvai ou se adelgaça,
E mostra, meio ocultos, com mais graça,
Flores, verdura, emaranhados ramos,
Uma terra tão bela,
Que mais semelhan aparição divina,
Ou cahida do céo fulgida estrela.
Assim aos denodados portuguezes
Apareceste, ó ilha da Madeira,
Para os avigora res nos revezes;
Assim aos olhos de Noé outrora,
Depois das grandes águas,
Apareceu o arco da aliança,
Entre ele e Deus, o íris da bonança,
Que do dilúvio o confortou nas mágoas.
Sim, tu foste a esperança,
Que Deus, á nossa empresa favorável,
Nos mostrou para nos dar alentos,
E, através do luctar dos elementos,
Cumprirmos nosso fado incomparável.
D'aqui, cheios de arrojo, nós partimos,
E d'Asia, e d'Africa e do Novo Mundo
Em grande parte as plagas descobrimos,
E pelo pégo fundo
Em roda o globo co'os baixeis medimos.
Como és bela! Da Grécia conhecida,
Tu serias de Vênus a morada,
Ou fôra, ao ver-te assim do mar sahida,
A nascença de Vênus fabulada.
Ficará a tela dos Jardins de Armida,
Sendo feita por ti, mais bem pintada,
E a descripção da Ilha dos Amores
Realçaram mais os teus primores.
Todos, à uma, os povos te namorar;
Mas a todos te mostrar insensível.
Embalde os filhos de Albion te adoram,
Te chamam Flor do Oceano imarcescível.
Nossos antigos os primeiros foram;
Por outrem nos deixar não te é possível.
Do céo, dos mares e de Deus à face
De nós contigo se firmou o enlace.
Por seres tão fiel, tão português
Mais ainda te estimo, ilha formosa;
Mas por laço diverso anda a ti presa
Minh'alma: da existência trabalhosa
Com risos esmaltar-me a tristeza,
Na quadra, embora amarga, descuidos
Da passada, inexperta juventude,
Quando uns dias viver em ti eu pude.
E agora que de ti me têm distante
O lugar e dos anos a carreira,
Phantazia-te ainda mais brilhante,
Vejo-te mais ainda feiticeira,
Que me recorda teu fluir constante
A minha primavera passageira,
A minha tão querida mocidade,
E és para mim um echo, uma saudade.