Texto - "Mysterio do Natal" Henrique Coelho Netto

feche e comece a digitar
A noite, profundamente escura e fria, atravessada de vento, atroava o fragor de ramagens estortegadas e d'águas precipitadas que se despenhavam, aos jorros, pelos algares. Nas chans ainda o trânsito era fácil, sem o varejo da ventania que expulsava os caminhantes, como a impedir-lhes a marcha; mas nas gargantas, entre alcantis, as lufadas, abocando á entrada, esfriam desabridas, uivando com a fúria de alcateias famintas em ronda ceva, a fariscar redis.

Todas as estrelas haviam-se apagado, apenas rutilavam, enorme, como lumaréu de vigília em torre, a que surgirá e brilhava sobre Bethlem.

Os passos estrepitar nos seixos, estalavam nas folhas e no ramalho seco.

Um ramo que abolisse, o lento defluir de um fio d'água por entre pedras levantavam ruídos temerosos.

Ás vezes José detinha-se, hesitante na bifurcação de duas trilhas, mas pouco durava a dúvida porque uma das veredas enegrecia ainda mais, ao passo que a outra rutilavam fulgida, como calçada a diamantes, oferecendo-se, clara e segura, aos peregrinos.

Como entrassem em sinuosa e esgalgada passagem, murada de rochas anfractuosas, eriçada de agaves e ecoando como o âmbito de uma caverna, ouviram leve, frouxo ruído como de esfolar d'asas.

Uma águia, talvez, que acordara em algum teso e de pé, atenta, alargando as azas, ficará em atitude hostil pronta a arremeter em defesa do ninho.

O patriarca, acolhendo a esposa meiga, cujas faces pareciam de neve, apertou com força o cajado e levantou os olhos.

Maria, sentindo o perigo, tartamudeou, tímida e trêmula, uma oração ao Senhor. O receio de um ataque em sítio tão desolado, longe de toda habitação, onde nem choça de pegureiro havia, deteve o homem.

Os corações batiam. Nela era o pavor do desconhecido, o grande medo trágico das sombras do Sheol, que erram, à noite, pelos descampados; nele era temor por ela.

Não falavam, de olhos muito abertos, quietos, imóveis como os rochedos que os emparedavam.

De repente um clarão fulgor. A passagem iluminou-se, as pedras cintila e as palmeiras dos cardos ficaram como de prata. E eles viram uma grande luz à flor da terra e clareando as rochas.

Aves despertando galreavam festivamente o canto da madrugada.

Levantando o olhar viram os dois a fonte do esplendor. Era um anjo que os precedia, ora trilhando os caminhos, ora voando acima das rochas, pousando nos alcandora quando o lento e fatigado andar de Maria retardavam a marcha.

A virgem sorria de enlevo e José, tolhido de comoção, não se atrevia a encarar o guia resplandecente, cujo reflexo abria na terra um clarão de luar. E as azas falava docemente no silêncio.

A virgem reconheceu no anjo o mancebo que a saudara com as palavras misteriosas, cuja promessa cumpria-se e José reviu o divino emissário que lhe aparecera em sonho, sob a figueira do horto, defendendo a inocência de Maria, em cujo seio, como em corola de flor, a Graça perpassa em gênese impermeável, fecundando-o como o sol fecunda a leiva, eternamente pura.