Texto - "Bom-senso e bom-gosto" Antero de Quental

feche e comece a digitar
O contrário disto tudo é que é a bela, a imensa missão do escritor.
É um sacerdócio, um ofício público e religioso de guarda incorruptível
das ideias, dos sentimentos, dos costumes, das obras e das palavras. Para
isso toda a altura, toda a nobreza interior são pouco ainda. Para isso
toda a independência de espírito, toda a despreocupação de vaidades,
toda a liberdade de jugos impostos, de mestres, de autoridades, nunca
será de mais. O mineiro quer os braços soltos para cavar buscando o ouro
entre as areias grossas. O piloto quer os olhos desvendados para ler nos
astros o caminho da não por entre as ondas incertas. O sacerdote quer o
coração limpo de paixões, de interesses, para aconselhar, guiar, julgar,
imparcial e justo. O escritor que o espírito livre de jugos, o
pensamento livre de preconceitos e respeitos inúteis, o coração livre de
vaidades, incorruptível e intemerato. Só assim serão grandes e fecundas
as suas obras: só assim merecerá o lugar de censor entre os homens,
porque o terá alcançado, não pelo favor das turbas inconstantes e
injustas, ou pelo patronato degradante dos grandes e ilustres, mas
elevando-se naturalmente sobre todos pela ciência, pelo paciente estudo
de si e dos outros, pela limpeza interior de uma alma que só vê e busca o
bem, o belo, o verdadeiro.

Este é o escritor, o poeta, o apóstolo. Se o obrigassem a respeitos
convencionais, a terrores supersticiosos diante de certos homens, a
espantos cegos diante de certas cousas; se o fizessem baixar a cabeça e
as costas para entrar a porta do pantheon literário; ele, o pobre,
ficaria sempre curvo e submisso, humilde e sem força própria, servo de
alheias ideias e apóstolo apenas de palavras decoradas e vazias de alma.
Como se havia ele pois erguer, entre seus irmãos, tão alto que seus
olhos fossem uns como faraós para todos os outros olhos, a sua fronte
uma como montanha de luz; tão alto que as palavras de sua boca caíssem
sobre as cabeças como uma chuva benéfica e fecundante? Seria, depois das
provas e das torturas, das genuflexões e das baixezas da iniciação no
grêmio dos senhores, seria um aleijão e não gigante, um aborto em
vez de herói e, em vez de sobre exceder a todos com a fronte, andaria
sumido entre eles, visitado escassamente pelo sol e pela luz. Ele, que
não soubera procurar para si o seu caminho, como poderia ele alumiar o
dos outros? Ele, humilde, como ensinaria a altivez e a dignidade?
Respeitador de conveniências estéreis, como daria o exemplo das revoltas
fecundas? Sem alma, como a insuflar no peito dos tristes e humilhados?
Sem vontade, como resistiria às tyrannies da opinião omnipotente, ao
capricho dos grandes, às ambições, às tentações?