Texto - "Palavras aladas" Antero de Quental

feche e comece a digitar
Raios de extinta luz, ecos perdidos
De voz que se sumiu no espaço absorta
Meus cantos voarão de idade em idade,
Como folhas que ao longe o vento espalha.

Não sabe a folha já mirrada e seca,
Que um sopro do tufão levou revolta,
Que outro sopro talvez desfaça em breve
Não sabe a triste o ramo onde nascera,
A seiva que a nutriu, quando inda bela,
O tronco que adornou com verde gala,
E onde entre irmãs folgou por tarde amena?
Soltos do tronco, sem calor, sem vida,
Filhos órfãos que um seio não aquece,
Um seio maternal ébrio de afetos,
Meus cantos voarão de idade em idade,
Como folhas que ao longe o vento espalha.

Mas se alguém, vendo a folha abandonada,
Lembrar e vir na mente o tempo antigo
Em que bela, vestindo pompa e galas,
Brilhou rica de seiva e luz e vida;
Se na mente sonhar a pura essência
Que animará esse pó ali revolto;
Se corpo der á sombra fugitiva,
E a voz unir ao eco, e o foco ao raio;
Se alguém souber do canto o sentir íntimo,
Oh, esse há de entender a vida, a crença
Dessa alma que animará outrora o canto.

Se alguém tiver no peito a urna mística
Onde o Amor se recolhe, esse há de amar-me;
Se livre, por tiranos não comprado,
Pulsar um coração, esse comigo
Há de a aurora saudar do novo dia;
Se uma alma recordar a eterna pátria
Que lhe dera o Senhor, do céu saudosa
Comigo a Deus num hino há de elevar-se.

Aos mais será mistério o canto e a lira,
A Liberdade, a Amor e a Deus votada:
E já, soltos do tronco onde medram,
Meus cantos voarão de idade em idade,
Como folhas que ao longe o vento espalha.